sexta-feira, 21 de outubro de 2011

O incomemorável

Ele era um ditador sanguinário, maluco, homicida, coisa e tal. Fato. E eu definitivamente estou looooonge de ter peninha do homem. Por questões práticas, não há também como negar que o mundo fica mais respirável cada vez que o índice de portadores de maldade diminui. Mas isso não me consola ou convence sobre o modo como Muamar Kadafi foi morto. Porque o problema está justamente aí: foi morto. A não ser em legítima defesa urgentíssima, quando o sequestrador está insano com a arma na cabeça do refém – pronto para tudo, surdo a tudo – , não consigo compactuar com a ideia do assassinato. Não lastimo (nem celebro) a morte do sujeito: lastimo o falecimento de mais um ponto em nosso nível de civilidade, lastimo mais um enfeiamento de nossa conduta, lastimo outra mancha de sangue de que não precisávamos, outra uga-buguice que a humanidade poderia dormir sem. Lastimo que Kadafi (e Saddam, e Osama) tenha(m) cumprido sua principal função: igualar-nos a ele(s). Qual o nome de quem fica feliz com um fuzilamento que lhe convém?

Perfeita uma carta de leitor (Sérgio Luís Escovedo) publicada hoje nO Globo. Tão perfeita que me retiro a um cantinho e lhe passo a palavra: “A morte de um tirano traz uma onda de júbilo para o povo, mas não deve ser comemorada. A morte nunca pode ser comemorada: isto é barbárie, é retroceder ao estágio mais primário da civilização. Basta lembrar que [, na Odisseia,] Ulisses condena sua aia, quando ela festeja a matança dos pretendentes [de Penélope]. Se Homero, em 700 a.C., já dava essa lição, de que serviram quase três milênios de História?”. Excelente pergunta. Inclusive vou ficar aqui no cantinho chorando mais um pouco e já volto.

É justamente – ou é também – para este nosso lado visigodo, canibal, justiceiro mascarado, que existe a ficção. Nela podemos nos dar ao luxo de esquartejar, escalpelar, decapitar, empalar quem quer que seja, desde que a coisa permaneça entre nossos bonequinhos de plástico, celuloide, papel. Podemos atirar em Odete Roitman, empurrar o Coiote no precipício, arrancar a cabeça dos Volturi, petrificar a Medusa, brincar de Jigsaw. Matar o vilão e sair do cinema. Mãos e alma limpinhas. Temos TV, literatura, teatro, Playstation exatamente para dar vazão aos monstros do sótão, tão amorais e genocidas quanto os que nossos tiranos da vida real criaram em cativeiro.

E aí nos vem mamãe falando: você não deve, no embalo do riso, da vontade e da distração, imitar em tudo seus amiguinhos. Porque alguns simplesmente esquecem a hora de parar de brincar.

2 comentários:

Diva Déa disse...

Fernandinha, hoje eu discordo de você. Se cada pedófilo, estuprador e homicida levasse um tiro no peito logo após cometer seu primeiro crime, haveria bem menos vítimas e aí sim o mundo seria de fato mais respirável. Pelo menos o Brasil - em que a prisão é um lugar cheio de regalias do qual se sai rapidinho, quando se entra - seria.
Pouco me importa como Kadafi foi morto. Foi e pronto. Basta pensar nos milhares de vítimas de violência sexual que seu governo fez para sentir um alívio danado com sua morte e tudo que ela significa. E tenho certeza absoluta de que as autoridades pensam assim, mas, para não dizerem que estão incentivando a violência, querem investigar "as cricunstâncias" da morte. Me parece bastante hipócrita isso...

Fernanda Duarte disse...

Há sempre uma dose de saudável hipocrisia necessária a toda civilidade, minha Diva. :-) Mas hipocrisia não é o nome certo para todo fingimento; alguns fingimentos são apenas supremacias do pensamento sobre a barbárie, é nosso esforço de guerra pessoal. E o importante não é tanto ele, o tirano que já morreu, mas nós. O que fazemos de nós. De nossa inocência que não deve morrer de todo para que consigamos sobreviver, de nossa moralidade. Difícil é, quase impossível, e quiçá mais politicamente correto do que eu mesma gosto. Mas há o só politicamente correto e há o simplesmente correto. E uma coisa aprendi para toda a vida: correto é (a não ser em caso de legitimíssima defesa, como já disse) não matar. Pode até ser que matando alguns venhamos a salvar outros. Pode. Mas os precedentes que se abrem não compensam. Se decidimos ser deuses, outros vão querer ser também. Porque justiça com as próprias mãos é isso: um aglomerado sem fim de deuses e deusas querendo atirar sua primeira pedra. E o primeiro assassinado é nossa humanidade. Então não é por um déspota que lamento, mas por nós, pela parte nossa justa e incorruptível que morre a cada vez que compactuamos com uma morte violenta. É um infeliz, mas é homem, é uma vida humana. E precedentes abertos não fecham. Não somos "minority reports" para prever crimes futuros de ninguém. Somos só nós mesmos e devemos cuidar para que nosso presente seja tão puro e justo quanto possível. É só o que nos cabe, e nosso alcance não vai além de nossa própria ética. É o baldezinho de água do beija-flor, mas é alguma coisa... Beijíssimos!