quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

O dia que sabia demais

29 de fevereiro: filhote de amor bandido entre Sol e Terra – esta nossa Terra que, não contente de cumprir seu ciclo de contemplação por 365 noites, ainda arruma 6 horas a cada ano para uma fugidinha com o adorado, quando relógios e calendários não estão olhando. Safadenha. De quatro em quatro voltas se cumpre a gestação do dia excedente, e este 29 nos nasce em forma de bônus. Chega especial por natureza. Olha de cima, como quem se banhou longo tempo nos mistérios de seu preparo; quem privou de conversas palpitantes, estelares, a que os outros dias (de meras e rápidas 24 horas) não tiveram acesso.

O 29 amanhece com cara de abelha-rainha, pinta de diamante cor-de-rosa, deliciado na alegria de sua raridade. Tem espreguiçar de gente que dormiu em seda. Tem o abrir de olhos de gente que se gosta esperada. Tem o riso marotíssimo de um Macunaíma e o quebrar malemolente de uma Dona Flor, cheio de mistura, liberdade e tempero. Tem, basicamente, ar de quem sabe – sabe há muito tempo e não conta. Não conta seus segredos de meteoro, suas memórias de asteroide, as confidências que sua mãe Terra lhe sussurrou no berço, desabafando as flechadas recebidas no correr dos dias regulares. Não conta o que exatamente causamos de rachadura nesse ventre doído de planeta; porém nos encara com olhar que conhece. E lembra.

Não é ressentido o 29, entretanto. Valoriza a vantagem, faz doce, faz doce em relação aos seus grandes enigmas, mas enfim os compartilha, elegante. Admite que seus 365 irmãos de praxe não são menos incomuns porque anuais; repetem-se em número, nunca em fatos e alma, nunca na história deste (ou de outro) país. Preciosidades distintas que calham de nascer homônimas. O 29 de fevereiro nos saca: observa-nos durante seu longo ócio, vê-nos cair na asneira de tratar o tempo como eterno retorno, e não lucro eterno; como repetição, e não fornada quentinha. Vê-nos aguardar marcos palpáveis de festa, horas determinadas, datas específicas, em vez de considerar cada feito com a deferência de um aniversário. Vê-nos – imprudentes que somos – deixar para ser felizes só de vez em quando.

2012 é ano como qualquer, tão constante e sedutor quanto o são todos. 29 de fevereiro é dia como qualquer, tão especial por natureza quanto o são todos. Bissextos de vida somos nós.

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

De propósito

Fui ver A invenção de Hugo Cabret e gostei mais do que devia, a julgar por alguns críticos e críticas não muito entusiastas. Fazer o quê? é absolutamente adorável, de modo especial para quem tem apetite incontrolável de cinema e(m) seus primórdios. Foi uma das poucas vezes em que chorei racionalmente na sala de projeção. Chorei com menos coração que cabeça: uma lágrima pelo novo mundo flagrado em cueiros.

Entre fotografia lindíssima (tons de sépia numa boa parte, com cores vivas quase pintadas à mão), som e efeitos precisos, roteiro previsível mas charmoso, elenco pescado a dedo, o que mais me alfinetou foi o trecho no qual o pequeno Hugo compara um personagem deprimido a uma máquina quebrada; nenhum dos dois está cumprindo seu propósito. Quem sabe eu não possa consertá-lo, pensa o garoto com ambiciosa fofura. O propósito de Hugo é consertar – gentes e engrenagens. Sua interlocutora suspira não conhecer o propósito de si mesma. “Se meus pais estivessem vivos, talvez eu soubesse.”

Se nossos olhos estiverem vivos, talvez saibamos. Talvez notemos se somos máquina de escrever ou instrumento de dar aula, se somos geladeira de conservar memória ou fogão de descongelá-la, se somos câmera de captar o mundo ou arado de revolvê-lo. Talvez percebamos se somos cavalete de dar base, se somos tela de servir à beleza, se somos pincel de acordá-la, se somos moldura de destacá-la. Talvez identifiquemos se somos ventilador de aliviar, carro de conduzir, espelho de relatar, microfone de amplificar, massageador de reduzir, microscópio de buscar, telescópio de trazer. Talvez nos revelemos como avião, pulseira, estrela, modem, grade, janela, ponte, DVD, filmadora, troféu, brinquedo, holofote. Talvez sejamos potenciais chaves de fenda. Talvez sejamos vocacionados tijolos. Ou cimentos. Ou chuveiros. Ou azulejos. Ou cadeiras. Ou almofadas. Ou interruptores. Somos todos objetos de propósito, justinho, para alguma função e feito.

Que é o modo único de ser sujeito.

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

O certo

O personagem chamado “ogro” na edição do BBB que está em curso – Rafa – dispensa apresentações para a maioria dos espectadores. (Diz que) faz, (diz que) acontece e tanto deixou de fazer e acontecer que acabou no paredão. Promete sair com alguns noventa e tantos por cento de rejeição do público. Não sei quanto a vocês, mas me irritam fundamente os discursos políticos e o deslizar de quiabo esperto do sujeito; em especial o hábito de lançar, na conversa incômoda, uma última frase de efeito e virar as costas. Parece boa pessoa de má estratégia. O que me impressionou, porém, não foram as malícias do jogador, e sim uma fala aparentemente neutra que ele usou para consolar o colega Yuri em relação à saída da namorada Laisa: “A gente não sabe o que é certo e o que é errado aqui dentro”.

Pulei na cadeira. Mas como é que não sabe??... Por um lado, entendo o que queria dizer: a gente não sabe exatamente como conquistar a plateia. A gente não sabe com certeza quem é o mais simpático na visão dos votantes, não sabe como a edição está destacando os personagens, não sabe como tem sido a recepção afetiva do país. Vá lá, entendo. De qualquer maneira, é um ato falho que representa significativamente a politiquice do garoto – e, de quebra, o oportunismo essencial de todos nós.

Ora, o certo e o errado lá de dentro são, sem tirar nem pôr, o certo e o errado daqui de fora. Cumprimentar os parceiros pelo menos duas ou três vezes por dia, estando ou não de bico por causa da briguita prévia: certo. Abusar do palavrão e da vulgaridade, estando ou não numa conversa amistosa entre membros do mesmo time: errado. Ser justo na partilha do espaço e da comida, sem avançar uma migalhinha na cota alheia: certo. Ser egoísta no campo sonoro, amofinando o próximo com cantos e gritarias desvairadas: errado. Investir na coerência dos atos, consciente de que duas caras se destroem mutuamente ao longo de qualquer período: certo. Confiar em preconceito e fofoca, venha esse feiume do lado e da fonte que vier: errado. Sem neura, sem mistério. Só a simples, a velha questão de pesar o publicável pela balança do autêntico.

O que acontece, embora resistamos a essa complicada obviedade, é que as vidas pública e privada só devem separar-se em atos de amor e higiene. No mais, não convém à decência sermos massinhas de modelar tão obscenamente flexíveis quanto manda o gosto do freguês, a análise parcial do espectador. Jogamos limpo quando mudamos de amadurecer; jogamo-nos lixo quando nos mascaramos de seduzir. Seduzir no mau sentido. Seduzir de comprar lebre sendo gato. De vender material perecível, suscetível, volátil, impermanente, perigosamente relativo. De ser um atraentíssimo quase alguém.

Sólido é ter certos e errados que não oscilam conforme o tamanho da espiadinha.

domingo, 26 de fevereiro de 2012

Cresça e apareça

Viagem de metrô que estava uma filial de Armageddon. Dez a doze indivíduos postados no meio do vagão a encher a tarde de infernos: cantoria histérica de arrebentar vidro, gritaria, cachoeira de palavrão, gargalhada em 800 decibéis, tabefe na parede do carro, cantoria, palavrão, mais tabefe na parede do carro. A barbárie. Enfiei cara e alma num livro, dada a impossibilidade de protestar sozinha ou de voar o corpo para fora da jaula. Os demais passageiros, naquela brasileiríssima submissão às mostras de grosseria alheia, acatavam o show com tristeza e rápido constrangimento. Solidão. Em plena selva de primatas.

Fico cismando nos motivos dessa furiosa necessidade de ser gorila. Não digo que seja exclusividade masculina – já presenciei espetáculos femininos da mesma laia, ou piores –, mas me parece que, quando ocorrem, umas tais manifestações estão ligadas a certo deleite dos homens em ser detestados. Detestáveis. Sorte nossa que não acomete a todos; pega os menos evoluídos. Os que, sem ter limitações reais, vestiram precocemente o paletó de vítima. Quanto mais o cidadão se adivinha como um ser sem cultura, sem polimento, sem informação, sem papo, sem meta, sem graça, tanto maior a gana de carbonizar o próprio filme. É cansaço do desejo de melhora. É raiva de ter preguiça das boas chances. É o desespero dos afogados que querem disfarçar sua exaustão debaixo da “escolha” de afundar. É o grito contra si mesmo que vira vingança pública: ou me puxam na marra deste abismo, ou faço birra esfregando nos outros meus excrementos de ignorância. Bem no olho, ó!

Todo vândalo de praça, todo mamute de escola, todo neanderthal de metrô é no fundo guri chorão, com excesso de autopiedade. Excesso de energia acumulada enquanto odiava e lamentava suas incompetências. Normalmente esses taizinhos esbarram em outros mamutes – e pronto: unem as covardias pessoais em covardia gigante, suprema, que usa máscara de coragem dentro da vertigem causada pelo anonimato. Repare. Nossos visigodos do dia a dia andam em bando. Se encobrem. Se empurram. Se servem de álibi. Prestam-se um ao outro de papel higiênico para limpar as responsabilidades de cada fralda suja.

Você é visigodo e quer aparecer? Cresça. Não desfile sua pequenice interna em horário comercial. Cresça reduzindo-se na sandice, na bestagem, na arrogância, na autocomplacência que só servem de matagal alto, de esconderijo para o que importa. Cresça dobrando os joelhos, cresça baixando a cabeça às regras que nos civilizam, cresça curvando o lombo para pegar o lixo que escapou à lata, cresça inclinando as costas para dar mãozinha ao tombado, cresça diminuindo o tom, cresça apeando do palco, cresça descendo do salto. Cresça parando de fugir de ser gente.

Ou vá chorar “mamãe, eu quero” em algum planeta de macacos.

sábado, 25 de fevereiro de 2012

Dez, nota dez

Mesmo quem não dá aula tem intimidade com a cena. O quadro lotado de matéria ou exercício, a apostila crivada de exercício ou matéria, a explicação rolando solta e um ser humano que levanta o braço com ar sonolento. Sim, meu filho, qual é a dúvida? Aposto e ganho que, ao lado da expressão sofrida e entediada da criatura, uma das perguntas vem fatídica: “Vale nota, fessô?”; “Fessô, cai na prova?”.

Não é porque adolescente, porque criança. Fazemos igualzinho – marmanjamente. Plantados e crescidos na cultura do mínimo cultivo pessoal, só tiramos traseiro e dedo mindinho de suas almofadas quando a coisa nos sufoca de urgência. De violência. De dependência. Nos beneficiamos por meríssima obrigação. Nos doamos com os necessários milímetros de dedicação. Só aqueles. Vamos ao curso de ressaca pra não levar falta, lemos o romance de véspera pra fazer prova, diminuímos a velocidade temerária porque tem radar de olho, comemos uma verdura medíocre porque tem mãe de butuca, sorrimos pro cliente porque o chefe mandou, largamos o cigarro porque a noiva exigiu. Fazemos o basiquinho de cuidado e dever sem gozo, sem gosto, sem busca, sem capricho, sem decisão. Nos relegamos a utilitários sem acessórios de fábrica. Nos aturamos porque viver cai na prova. Nos conduzimos com enfado. Nos empurramos com a barriga.

E por nossa mesquinhez incorrigível é que sou fã do desfile das campeãs do carnaval. Este desfile de hoje, de agora, com sua inteireza de sempre. Não que eu já tenha assistido. Sou fã em espírito. Em conceito. Sou fã por princípio de quem adentra a avenida pra ganhar – já tendo o troféu guardado e ganho. Sou fã de quem desnecessita de jurado pra entrar quebrando tudo, no sentido de arraso feliz. Babo nas escolas que repetem a beleza do show original, que se imitam nos estratagemas de sedução, que se esmeram nas iguais marcações, fantasias, coreografias, maquiagens, paradinhas, nas iguais purpurinas e acenos, nos mesmos destaques e efeitos, em até superiores novidades. As campeãs, já campeãs, não se economizam; vêm pra disputar título ainda que moral, que metafórico, de pura delícia própria e alheia, de pura alegria levada a extremos de seriedade. Creem na hegemonia da entrega. No perfeccionismo relaxado dos que (se) amam. No salário maior: o auto e coletivo reconhecimento.

Não acreditam em só existir quando vale nota.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Não se afobe, não

Em 1939, início da II Guerra, o governo britânico bolou alguns cartazes motivadores para que a população não se apavorasse com os avanços do conflito. De todos os modelos, o que perdurou na história foi o de texto mais simplinho. Ele inteiro, por sinal, era uma ode ao simples: fundo vermelho, letras brancas e a silhueta da coroa sobre a frase consoladora, curta, objetiva, que botava o povo inglês debaixo das asas. “Keep calm and carry on” (“Mantenha a calma e siga em frente”). Assim. Direto, limpo. Cabeça erguida. Aparentemente deu certo.

Deu tão certo que o cartaz, redescoberto há pouco mais de uma década, virou modinha. Fazer releituras da obra é a bobice do momento. “Keep calm and join the dark side”, escrevem os jedis transviados. “Keep calm and oops I did it again”, citam marotos os fãs de Britney. “Keep calm because we all live in a yellow submarine”, juram contentes os fãs dos Beatles. Fora as engraçadices em língua pátria: “Keep calm que hoje é dia de rock, bebê”. “Keep calm and ai, se eu te pego”. “Keep calm and alalá-ô”. “Keep calm and ziriguidum”.

Segue com etcéteras e etcéteras a maluqueira, da qual não pude deixar de rir gostosamente. Inutilidade ingênua e sapeca. Ou serão tão inúteis as recomendações de calma – mesmo gaiatas – num mundo cada vez mais espavorido? É brincadeira a coisa, mas acaba que nos convence a ruminar a expressão na base do repeteco. Os olhos se acostumam às palavras mágicas. O coração fica persuadido. Cada novo formato do cartaz é uma razão colorida para desestressar, uma peça da campanha antiafobação. Vamos baixar os ânimos, meu povo. Keep calm.

Keep calm porque a maioria dos estranhos não é psicopata ou terrorista. Keep calm porque uma negociação honesta com o banco há de permitir o pagamento da dívida. Keep calm porque o sujeito que te fechou no trânsito não está numa conspiração internacional para azedar sua manhã. Keep calm porque o sujeito que assobiou na boate tem intenções boníssimas com sua irmã. Keep calm porque o vizinho não deixou cair a tinta azul de propósito, keep calm porque o inquilino não atrasou por safadeza o depósito, keep calm porque antes da prova tem montão de semana pro estudo. Keep calm porque a gente ferve e queima a largada em quase tudo. Sem combustão de véspera. Sem sofreguidão na espera. Hold on.

Keep calm e cheire o jornal antes da leitura, passe um café antes da conversa, passe no florista antes do cinema. Keep calm e continue os bons romances, os bons vinhos, os bons vídeos, os bons princípios, as boas finalidades. Keep calm e derreta o gelo, conserve as geleiras. Keep calm e prefira a bike, conserve o planeta. Keep calm e se dê férias de agonia, pausa na neurose, folga de dieta, tempo no trabalho, break no relatório. Keep calm e (no mínimo) seis vezes por semana troque prazo por abraço, preço por presente, carro por carícia, canteiro de obra por Jardim Botânico. Keep calm e curta o que é curto sem esquecer as declarações devidas e longas. Keep calm, relaxe e se goste. Keep calm, deite e se erga igualmente repousado em si, amante de si, perto ou longe do travesseiro. Enjoy-se inteiro.

(Mas também não deixe de trancar a porta, cumprir o prazo, cumprir dieta, fazer planilha de gasto, fazer seguro do carro, lembrar a conta e o aniversário, abrir o olho e fechar o gás, evitar a praia cheia e a rua deserta, o site e o transeunte esquisitos, o tráfego no último dia do IR, o trânsito sem filtro UV. Keep wise.)

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

O segredo

Hoje é Dia da Sedução – e saber disso irá, talvez, motivar este ou aquela a passar na sex shop favorita para garantir a última novidade em brinquedinhos. O gelzito que esfria (ou esquenta) com gosto de pera siciliana, a fantasia de gueixa normalista, o aparelho que vibra tocando em estéreo a música do casal, a lingerie vermelho-Ferrari com pele de leopardo. Nada contra. Superválido. Desde que não se ligue o nome à pessoa errada; desde que não se entenda por sedução essa Marquês de Sapucaí amorosa. Umazinha ou outra artimanha inesperada pode até (na eventualidade, na medida, no contexto) ajudar a forrar o ambiente de alegria e convite. O excesso soa a histeria. Feito maquiagem agressiva que enfeia a beleza no lugar de ressaltá-la, o exagero de aparências arranca da sedução o posto que verdadeiramente lhe cabe: o do segredo.

Sedução é arte de chamar sem revelação nem grito, arte de sombra e sussurro. Não é pegar, é guardar. Não é incendiar, é derreter. Não é desvelar-se com desespero, mas o contrário: vestir um mistério só pouquinho transparente, entreabrir a porta para alimentar a gula, em vez de escancará-la prometendo saciedade. A gente pode achar que seduz com pose de Playboy, 500 ml de peito e batom de coelhinha, e no entanto serve a mero fast food de desejo, como Big Mac para a fome urgente. Sedução é vagarosa, vinho de safra gorda que não se entrega ao paladar sem demorar no perfume. Entra na memória antes de ser pedido pelo estômago. Sedução é fazer-se indispensável mil anos antes do primeiro toque – por razões essencialmente desconhecidas.

As razões têm de ser desconhecidas. Indefiníveis. Inexprimíveis. Tão frescas como secretas para o seduzido. Que seja esse jeito inimitável de já acordar cheirando a jasmim, que seja a maneira eterna de olhar sorrindo sem pingo de ironia, que seja o ar de iluminação inexplicável ao embalar bebês com cantigas russas, que seja a segurança incompreensível em adivinhar preferências com exatidão de mago. Que seja o que não poderia; não o que se aguardava; não o que se entende. Sedução é, da parte agente, silêncio e cálculo; da parte caçada, assombro.

Seduzir não é puxar pra cama, não é ganhar pra hoje. É pegar pra sempre.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Lembra-te de que és pó

É uma das frases clássicas da Quarta-Feira de Cinzas: lembra-te de que és pó, e ao pó voltarás. Tapão na cara pra não deixar dúvidas. Pode-se não ser religioso nem atentar para o início da quaresma, mas a frase está lá nascendo para todos, universal na dureza, firme e fortona em sua objetividade crua. Deixa de ser besta, minha gente. Ao pó voltaremos.

Deixa de DR de BBB porque o outro teve insônia e deu bom-dia atravessado, porque falou da sua mãe com um adjetivo a mais ou a menos, porque entortou um pouquinho a boca para a esquerda – e não para a direita – quando você contou o problema no trabalho. Deixa de pedir divórcio porque o/a cujo/a esqueceu o aniversário de primeira ida ao cinema ou primeiro ursinho de pelúcia. Deixa de criar inimigo mortal porque o colega de escritório não convidou pro casamento da filha ou não devolveu o grampeador. Ao pó voltaremos.

Deixa de tentar suicídio porque o time perdeu, de quebrar o espelho porque o nariz espinhou, de largar o emprego porque o chefe rosnou, de fugir de casa porque o vaso caiu. Deixa pra lá o Chanel manchado pela prima. Deixa de lado a festa funkeira do vizinho. Deixa estar o muxoxo indiferente do caçula. O churrasco só prometido. O help só sugerido. A escolha só insinuada. A promoção não efetivada. Ao pó – voltaremos!

Deixa de fita, deixa de onda, deixa de história, de beicinho, de firula, de nhenhenhém, de tititi, de chororô. Deixa de perder cabelo cobiçando a mansão que vai virar tijolo moído. Deixa de perder dinheiro chapinhando na marra o que vai virar cabelo caído. Deixa de perder a alma tomando a propina que vai virar dinheiro maldito. Das piscinas eternas, das declarações insinceras, das mechas alisadas, das lanchas redecoradas, das fortunas de oito gerações, das modas praia dos últimos verões, olha que não sobra uma só. Voltaremos ao pó.

O que fica? O beijo real, porque tornado nuvem. O amor efetivo, porque sublimado em estrela. O auxílio honesto, porque vaporizado em ternura. A mão estendida, porque transformada em memória. O feito heroico, porque elevado a narrativa. O tudão que se ergue acima desta terra de ácaros e tsunamis; o que é estável o suficiente para se metamorfosear em arco-íris, suspender-se sobre enchentes e terremotos, flutuar sobre o caos nosso de cada dia, do fim dos dias. O que é coisa do mundo que não pertence ao mundo, é coisa de não fragmentar, de manter-se na inteireza dos diamantes abstratos, sólidos demais para virar poeira.

Tudo o mais se acaba em sua própria quarta-feira.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Funções de primeiro grau

Ano passado, a Grande Rio – escola de samba carioca do grupo especial – sofreu um senhor revés: foi quase engolida por um incêndio às vésperas do desfile. Entrou na Sapuca, mas não na competição. Este ano a menina veio que veio; mandou bala num enredo apropriadíssimo sobre superação, e homenageou, entre outros, o maestro João Carlos Martins, ex-pianista cujas provações físicas todos conhecem. E não é que o maestro não quis sair no carro alegórico que lhe prestava tributo? Preferiu tocar pratos no meio da bateria. Parecia especialmente feliz na posição. Aos repórteres que o questionavam, explicou com doçura sorridente: “Eu sou um músico, e minha função é ficar com os outros músicos”. Lá foi ele como bom parceiro de orquestra, fazendo sua partezinha na marcação do ritmo.

Morri de fofura com a humildade do maestro. Seria também sua função, claro, coroar a homenagem acenando de um lugar de destaque na alegoria. Mas há sempre a batida que bate mais fundamente, o pulso que nos pulsa com maior acerto e precisão. Nossas funções de primeiro grau. Nossos deveres urgentes, as vocações imediatas. Inignoráveis. As fidelidades maiores. No caso de Martins, estava no chamado do grupo que faz o som, ao qual está habituado a pertencer. Em nosso caso? mora no que quer que seja o último pensamento a nos surpreender em beira de perigo.

Sim, em beira de perigo sofremos cúmulo de honestidade. Quando há chance de deixarmos de ser, invade-nos a vertigem de nunca (ou de não suficientemente) termos sido. De não termos assumido nosso eu protagonista. De não ter permanecido na bateria quem jamais curtiu estar em evidência. De não ter investido em ser mãe quem jamais se completou no ser tia. De não ter se tornado surfista profissional quem a família convenceu a herdar o consultório. De não ter virado padre quem a família encaminhou pro casamento. De não ter topado o desafio quem considerou o salário diminuto. De não ter viajado quem era de viajar, de não ter mergulhado quem era de mergulhar, de não ter construído quem era de construir, de não ter composto quem era de compor. De termos brincado de cabra-cega no caminho, e espetado o tempo que seguramos na vontade que não nos pertence.

Indispensáveis somos no posto para o qual não achamos dublê de saudade.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Atrás do trio elétrico

Já disse aqui no blog que meu modo é primaveril: gosto de beleza suave, fresquinha, com ar viçoso de quem se espreguiça. Gosto de ir pra janela às 5h colher cheiro de dia nascendo. Gosto de broto de folha que ainda guarda pelúcia, gosto de pétala, de umidade, de cachoeira, de hotel-fazenda. De alegria que se manifesta plena e lenta, macia e devagarinha, sem os rigores do verão. Sem sol agressivo, queimando o cocuruto. Sem caminhão de areia e, em especial, sem caminhão de gente apertando dos lados, disputando espaço numa festa furiosa. Havemos de convir, pois, que praia de meio-dia e carnaval – o que de mais verão possa existir? – definitivamente me excluem. Não são pra mim. Para, que eu quero descer. Ir a bloco, trio elétrico, folia doida e ensolarada de rua? Nun-queeee-nha. Não sob esta direção. A não ser que se organize impeachment de mim. Desiste. Nem vem com essa.

Ontem fui ao bloco do Sargento Pimenta, no Aterro do Flamengo. Mais ou menos 60 mil cabeças (fora as perdidas). Numa contagem otimista para os claustrofóbicos.

Pirou, vão dizer. Roeu a corda. Pirei não, nem me traí nas mais arraigadas convicções. Acontece que os primaveris, se curtem diversão com sossego e brisa, ao mesmo tempo estão sempre em instante potencial de florescer. Sempre em véspera. Sempre nascendo. E acontece que meu Fábio, embora também principiante de blocos, é tanto quanto ou mais fã dos Beatles que eu. Então vambora. Pior que o programa de índio era o arrependimento de não ter encarado. Encaramos: marzão besta de gente, aperto de tudo que é lado, sol marvadinho, alalaô-mas-que-calor, a sede, a sede, a sede. Com o som péssimo, puxei o Fábio pra meiuca, quase no gargarejo do bloco, pra pelo menos aproveitar o que era de interesse. Era pra fazer, era pra fazer direito. Aproveitamos. Esguichou Beatles nas várias – todas – direções.

Obladi-obladamos o hino do Pimenta (uma releitura em português da música), balançamos coraçõezitos ao som de “All we need is love”, micaretamos gritando que “we all live in a yellow submarine!”, acompanhamos no braço o coro dos 43.227 “nanananãs” de “Hey, Jude”. Quando corria brisa e o sangue beatle apimentava as artérias, quase não nos lembrávamos do programa de aborígene. Repetir não é a questão. O que não podia “to be” era a gente criar remorso de curiosidade recolhida. Mission accomplished – com alguns quilômetros de vida mais rodados.

Atrás de um eu novinho, só não vai quem já morreu.

domingo, 19 de fevereiro de 2012

Numa folha qualquer

Foi a Renascer de Jacarepaguá entrar na Sapuca, abrindo o carnaval do Rio de Janeiro, e meu Fábio comentou: já sei que o post de hoje vai tascar Romero Britto. Batata. De apaixonadíssima que sou pela felicidade colorida do pintor, não podia dar outra. Romero é daqueles que têm minha fãzice incondicional, entregue, irrestrita; digam o que disserem os críticos mais azedos – que sua arte é comercial em excesso, que reproduz infantilmente o estilo de Andy Warhol –, faço muxoxo e sigo bebendo da fonte. Sou viciada em tudo que acha mui razoável ser simples. Tudo que considera vital ser direto. Limpo. Desafetado. De alegria objetiva.

Soube que, para compensar qualquer resmunguice de detratores, os loucos por Romero (quase todos) chamam seu trabalho de “arte da cura”. Como discordar? se é consolador para os olhos, para a gente, sofrer tanta inundação de traços fortes, que sabem sem pudor a forma desejada? Amo a improbabilidade deliciosa do sr. Britto, o estapafúrdio das misturas, o súbito das geometrias, a dança quase agressiva de tons que comprova, ante nosso conformismo, que estranho e inesperado às vezes bailam e (se) resolvem. Romero brinca de encarnar o comercial antiguinho da Faber-Castell, aquele que nos confortava da volta às aulas ao som da “Aquarela” de Toquinho. É simplesmente a maravilha possível, a proeza realizável, o poder acessível; a confirmação de que, com cinco ou seis retas, é fácil fazer um castelo.

Ele fez. Não só nos motivou com retas e curvas palpáveis, mas construiu-se uma vida alternativa às possibilidades geradas no nascimento. Construiu-se alternativas com tijolo de papel e tinta, de ideia e cor, riso e fofura, bolas e triângulos, simpatia e pincel. Construiu com um bocadão de labuta e outros tantos quilos de pura nuvem, de pura gostosura nossa. Romero, meu herói, prova que não é descabido sobreviver – largamente – de beleza materializada. Risonha. Sem lero-lero. Sem burocracia. Posta um palmo adiante do nariz ou da mão.

Beleza que (a não ser que desbotemos todos por dentro) nunquinha descolorirá.

sábado, 18 de fevereiro de 2012

A gente somos inútil

Visitei o blog Café de Fita e fui brindada com uma análise superbacana de poema de Paulo Leminski, “Aço em flor”. Mas o que mais me afaga no post é a frase com o que o autor Guillen o encerra: “A poesia precisa ser inútil para ter utilidade!”. Verdade docinha, consoladora. Em meio à síndrome de praticidade que acomete nossos dias, a poesia segue travessa, esgueirando-se nos cantos para não ganhar serviço. Não só aquela que se encarna nos poemas, que se materializa em estrofes: a poesia geral das artes, sejam faladas, filmadas, pintadas, cantadas, tecidas, esculpidas. Também a poesia involuntária, nascida de per si e independente de sujeito humano. Toda beleza se justifica pela desnecessidade de se justificar. Ou seja ela, antes, um hino à sua (à nossa) própria existência.

Colocar cabresto na arte; pedi-la de encomenda; dar-lhe uma função específica – não prejudica a boniteza da coisa se o autor for bom. Mata-lhe, no entanto, um bocadinho da alma, que já está ali selada por uma palavra de nossos patrocinadores, em vez de permanecer em estado de infância. Porque poesia é a nossa infância, é a hora do recreio que a gente se dá por dentro, para brincar de pique-pega e agarrar emoções insuspeitas. Porque poesia é que nem cavalo: não menos belo, nem menos cavalo quando selado e montado – mas sempre mais cavalo e mais belo (embora menos escovado, menos brilhante) quando solto em selvageria, entretido na fuzarca violenta de ser feliz.

Poesia somos nós sendo gente porque sim, sendo gente de propósito. E, portanto, sem propósito. Simplesmente permitindo que escorra de nós a vontade escondida, a verdade oculta, o espírito particular, para só então – mais tarde, fora do poema – moldar nossos quereres em algo funcional. Algo prático. Algo útil. Poesia é o momento de sermos brutalmente inúteis em nós mesmos, para que eventualmente esbarremos conosco em forma desarmada. Poesia é camping, somos nós em situação natural, gozando férias não remuneradas do mundo que é adulto e sólido.

Poesia é nossa parte que não está à venda.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Have a nice day

A comemoração americana de hoje é um torrão de fofura: Random Acts of Kindness Day (dia dos atos de gentileza aleatórios). Dia de ser legal just because. Pela diversão da coisa. Espécie de 1º. de abril às avessas, em que não se goza a superioridade sobre o outro – mas exatamente o privilégio de o servir. A delícia de se tornar artigo sem preço. A farra de receber como salário aquele espanto – impagável – de quem já não aguarda felicidades gratuitas.

Hoje é dia de chocar o mundo ignorando seus interesses, motivos e comércios. Dia de generosidade hardcore. De perambular com radarzinho para estar a postos – estar o tempo todo prestes a oferecer o braço, a moeda que completa o pagamento, a instrução para desvendar o site, a receita do velho empadão, a mordida no sanduíche. Dia de preparar o cafezinho não pedido, de sacar da bolsa a aspirina não solicitada, de aparecer com o bombom nem merecido. Dia de ler para a senhorinha posta em solidão indefesa. Ou de escutá-la sem ameaça de fuga. Dia de explicar o filme ao transeunte, de dar dica contra mancha na fila do banco, de perseguir o dono da carteira abandonada, de refrescar com suco as tensões do futebol, de arrumar o arquivo antes da escapada de feriado, de enviar o cartão de parabéns, de dar o telefonema de bem-vindo, de mandar o e-mail de apoio, de elogiar pra mãe, de elogiar pro marido, de elogiar pro chefe. Dia de rosas pro irmão. De conversa pro doente. De canja pra prima grávida. De nó de gravata pro amigo noivo. De leque pra amiga noiva. Da ida ao médico pra velha tia. Da pelúcia pro novo afilhado. Da explicação de geometria pro afilhado adolescente. Da atenção pro pequeno vizinho que aprendeu a contar de um a cem.

Sem olhar a quem.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Ensaio sobre a cegueira

Foi ontem. Um sujeito entrou no ônibus que vai de Glória a Leblon, no Rio de Janeiro. Obrigou uma menina que voltava da escola a sentar-se no último banco e, AO MEIO-DIA E MEIA, estuprou-a. Ainda tentou com outra passageira; depois saiu, lépido, para tomar uma condução na direção contrária. Sinais do crime ou do criminoso, ninguém sabe, ninguém viu.

Ninguém viu.

Plena luz do dia-recém-tarde, ônibus aberto, cidade grande, quarta-feira sem feriado – e ninguém viu. Nenhum passageiro notou a movimentação, nenhum curioso olhou para trás, nenhum retrovisor alertou o motorista. Nada. Com que então podem nos apunhalar em praça pública. Podem nos degolar num banco de escola. Podem nos esganar no meio de um Fla-Flu. Que importa? ninguém vê. Há anuência geral à cegueira seletiva. Se passa um jeans atochado, uma camiseta divertida, uma faixa vermelha de “liquidação”, um outdoor com a siliconadona (ou bombadão) da novela, pescoços se viram. Fareja-se a presa, ainda que se fique só na saudade. Mas espiadinhas que gerem encrenca, que deem à luz o danado do compromisso, são imediatamente descartadas – em nome de duas santas certezas: estamos atrasados e outro se encarregará de resolver o quiproquó.

Vá lá, também não vemos. Não vemos a criatura de pé na calçada, prancheta na mão e olhar pidão de pesquisa. Não vemos o rapaz sentado na calçada, mão estendida e nenhuma outra intenção que não de fome. Não vemos a vizinha de metrô aos prantos, para nosso constrangimento. Não vemos o deputado eleito às gargalhadas, para nossa humilhação. Não vemos o idoso com expressão de dúvida no caixa eletrônico, ou a idosa com ar de dor sob 16 sacolas. Não vemos o assalto nem o embaraço, não vemos o suborno nem o remorso, não vemos a decepção nem o sinal vermelho. Por que veríamos? Tão mais macio ignorar o tropeço engatilhado, atravessado na rotina. Tão mais confortável passar deslizando, escorregando, com tchauzinho de miss. Fantasiados de ignorância. Aconchegados na bolha.

Piores cegos somos nós, que não pretendemos nos ver.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Ilha do tesouro

Adele declarou: vai parar por quatro ou cinco anos e se dedicar à vida pessoal. Especificamente, amorosa. Escândalo. Bafão no Twitter. Como é que uma mulher – de sucesso! –, na segunda década do século XXI, me vira e diz que vai mandar a carreira pastar pra ficar namorando? “Agora terei mais tempo para (...) fazer um disco alegre”, explicou a estrela com candura. O anterior foi triste, triste, reflexo de uma separação; é preciso beber insistentemente em fonte colorida para que o próximo saia banhado de arco-íris. Então tá. O mundo resmungou alguma coisa feminista entredentes, frustrado e amarguinho. Eu – morri foi de inveja.

Sei que há moços e moçoilas tão apegadíssimos ao trabalho que não se reconhecem gente sem sua lufa-lufa profissional, seus MBAs colecionados, seus prêmios ganhos, sua prateleira de troféus, seu cartão de ponto. Respeito. Cada um enterra o baú de joias na ilha que bem entende. Eu, porém, estou com Adele e não abro nem com pé de cabra: pararia tudo que é expediente para cuidar da vida. Da casa. Do marido. De todo esse pequenino universo que gravita de dentro para o entorno de nós, e ao qual não damos a devida atenção porque permanecemos muito ocupados com êxitos publicáveis em revista.

Trabalho pode ser prazer ou contingência, mas o caso de Adele mostra que não importa. Está no primeiro grupo, a cantora; eu estou no segundo; e ambas temos o exato sentimento de usurpação. Há, sim, que se ter uma atividade produtiva (não vivemos num mundo onde corre leite e mel). Só não há – ou é um erro haver – necessidade de que ela engula nosso tempo de ser gente. Ser gente demora. Para a gente se construir, tem de colocar tijolinho de leitura, muito andaime de convívio, muita argamassa de família, muita tinta de arte (desejável) para dar acabamento. Fora o canteiro espiritual a ser regado para responder com perfumes, a prataria cívica a ser polida para brilhar cidadanias; fora o amor – o amor! – que descasca de velho se não levar reboco. Amar demora mais ainda.

E, no entanto, a gente vira a noite trabalhando no projeto ou atualizando o blog; sai cedo, volta tarde, encontra no meio do caminho, segundos apressados entre um trampo e o seguinte – feitiços de Áquila. Não se envolve, se esbarra. Falta o cuidado longo de deixar bilhete, de adivinhar o gosto, a preferência de hoje; falta o tempo essencial da ternura supérflua, do ataque inesperado, incontido, ilimitado. Falta a oportunidade de curtir a importância sem ser nas férias. No meio de tanta sobrevivência exasperada, falta chance de existir.

Papai Noel, me dê um ano – uma vida sabática. Para regar a rosa, a única, o meu centro de planetinha. O tesouro que os olhos veem e o coração sente, todo lindamente óbvio, muito embora soterrado pelas camadas de serviço que pesam sem explicação.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Love, love, love

14 de fevereiro. Para todo o mundo, dia de São Valentim (Valentine’s Day); para alguns países, quase o equivalente ao nosso 12 de junho. Quase. Porque o Valentine’s não fica só na ladainha dos cartões rosa-choque, buquês vermelhos e caixas de Ferrero Rocher. Não se restringe às namoradices propriamente ditas. O Valentine’s é Dia do Amor em seu tudão: nos casaizinhos, sim, mas também entre pai e filho, vô e neta, primão e primito, dois amigos, duas amigas. É o dia inteiramente feliz daquilo que, no conjunto, importa.

Lindo esse aspecto da celebração (mais cara aos americanos que a quaisquer outros). Pois não é, ou não deveria ser toda ligação humana uma espécie de namoro? Colocar em cada atendimento a doçura do flerte, em cada aula a vibe da conquista, em cada “oi” uma atenção de reverência – fórmula geral do eterno Valentine’s. Ideal é isso: que paqueremos dizeres alheios com piscadas de interesse genuíno, que proponhamos recreio aos desconsolados, que saremos com bombom (ainda que metafórico) a tristeza de outrem, que ofereçamos flores aos ambientes, que busquemos, que ouçamos, que sirvamos, que nos disponibilizemos. Ideal é que estejamos em estado de apaixonamento ininterrupto, e portanto abertos à tarefa de, em todos os bons sentidos, seduzir.

Neste 15, neste 16, neste 26, neste 29 de fevereiro – e neste março, e maio, sem esquecer cada novembro e dezembro –, tome juízo enfim: seduza. Não (apenas) no sentido erotizado, mas no largamente humano. Seduza de abrir caminho para si, e em si, e para o outro. Seduza de puxar a cadeira, para fazer cair de moda o hábito de puxar o tapete. Seduza de se escangalhar de riso, para afastar a tentação de escangalhar de maus humores a tarde. Seduza de embrulhar presente como se fosse o último, para largar o costume de embrulhar estômagos por ogrice incorrigível. Seduza: tire da gaveta, cada manhã, uma versão mais fresca e limpa de si mesmo, com o capricho de quem planeja pedir o dia em casamento.

Ou com a docilidade de quem trama ser pedido. E aceitar.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Três pontinhos

“As reticências são os três primeiros passos do pensamento que continua por conta própria o seu caminho”, disse Quintana. Ah, Quintana. Tenho uma barbaridade de carinho pelo poeta, e não pouco também pelas reticências. Tão úteis, as danadas. São como que um princípio de trilho infinito onde derramamos, escritor e leitor, todas as malícias e sandices.

Creio gostar dos três pontinhos pelo motivo que gosto dos dois-pontos: o ar de suspenso. A brincadeira com a expectativa e a respiração. Mas os dois-pontos são indiscretos, anunciam de trombeta que aí vem coisa revelada – enquanto as reticências posam de donzelas românticas, tímidas e trabalhadas no mistério. Foram, por sinal, consagradíssimas por autores românticos, e há de ser essa a razão mais óbvia do meu apreço. Amo aqueles meninos entrecortados, interrompidos, bufantes, ofegantes de excesso de vida, que arrebentava cedo de tanto ser gasta. As reticências eram a única possibilidade de expressão num século XIX sempre chocado consigo mesmo.

Reticências são as Três Marias do texto, as exclusivamente capazes de guiar nosso espanto, de botar calor numa surpresa fria e alma em exclamação apenas histérica. Reticências transformam a indignação de um “mas eu te amo!” na súplica de um “mas eu te amo!...”, e por pouco não vemos a Dama das Camélias aos pés de Armand. Reticências pausam a loucura urbana do “acordei, tomei café, me vesti, peguei o ônibus” numa quase cena campestre: “acordei... tomei café... me vesti... peguei o ônibus...”. Só não se pode abusar das cujas, sob pena de parecer tuberculose ou novela mexicana. Mas que sejam infinitas enquanto suspiram.

Da próxima vez que tropeçar em três pedrinhas na folha, mergulhe-se. Não são pedras de meio de caminho. É o autor postadão no princípio da lacuna de si mesmo, sorrindo marotices e (convite!) estendendo a mão.

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Involuções

Hoje é aniversário de Charles Darwin: 203 anos. Ainda tem gente que se dá ao trabalho de polemizar sua Teoria da Evolução das Espécies, achando-a (sei lá por quê) incompatível com os preceitos religiosos. Bobagem. O causo é que cada um fala, numa língua diferente, exatamente a mesma coisa – que somos criaturas fadadas ao aperfeiçoamento em todos os sentidos. Concordo em gênero e número, e em grau concordara se concordância de grau houvera. Porém faço um adendo ao assunto, repetindo a frase curta e adequadíssima que já ouvi de uma atriz: “Tudo aquilo que não evolui – involui”.

Parece tolamente óbvio. Não é. Não é óbvio porque julgamos caminhar inevitavelmente para a melhoria física, mental, espiritual, etceteral; e, quando não estivermos evoluindo, quando estivermos afundados na mais perfeita nulidade dos dias, achamos possível ficar sentados à beira da estrada, sem ir para trás ou para diante, dando um break do mundo e tomando a fresca. O problema é que não existe ficar parado. Não rola de descermos do planeta numa estação qualquer e irmos ali tomar um sorvete, permanecendo inalterados no enquanto-isso. Gente não vem com tecla pause. Se apeamos de nossa vidinha, na ilusão de daqui a pouco retornarmos a nós, o tempo segue e implacável nos atropela, em sua cegueira de crescimento. Servirmos ou não para o outro: a maior das seleções naturais.

Porque não chega a seu filho, o pai (ou mãe) indiferente cria ressentimentos irreversíveis. Porque se mantém pasmado e ranzinza diante das tecnologias, o funcionário vai pra lista de demissão. Porque nunca se animou a buscar agradinhos – feitos, comprados, beijados, ditos –, o cidadão recebe os papéis do divórcio. Porque se lixou para feitos, comprados e ditos do candidato, o cidadão recebe as más novas no contracheque. Se não nos lançamos, derrubam-nos. Se não nos mostramos, abandonam-nos. Se não caminhamos, ultrapassam-nos. Se não voamos, caímos. Se não bracejamos, afundamos.

Não há conservar-se: há melhorar ou piorar, crescer ou secar, cumprir-se ou se perder. Há luta, há procura, há tentativa e erro, há vontade e estudo, há treino e psicologia, há grito, há sede, há fome. Há a fome interminável que acomete o mundo, a fome de quem o gire, de quem o apreenda, de quem o puxe ou empurre, contanto que não o emperre. Há os superantes e os superados, os marcantes e os esquecidos, os construtores e os destruidores. Há os que prosseguem e os que se deixam. Há os que se atiram e os que se deitam. Os que vão e os que medram. Os que escrevem e os que se rasgam. Os que se jogam na lata ou no lixo. Os do circo. Os da cerca. Os da ajuda e os da jaula. Fortes que amam, frágeis recolhidos pela coleta seletiva.

Para tudo o mais, não há vagas.

sábado, 11 de fevereiro de 2012

True lies

Já vi trocentas vezes e passou na Sessão da tarde de ontem: Encontro de amor. Filme engraçadinho em que Jennifer Lopez, na pele de camareira de hotel chique, envolve-se com o político interpretado por Ralph Fiennes. Um clássico mal-entendido o faz pensar que a funcionária é uma ricaça; e, como em filme a melhor maneira de se desfazer um engano costuma ser a mais estrambólica possível, eis que a moça decide romper o envolvimento num baile de luxo. De luuuuuuxo. Uma porção de fadas madrinhas providencia a beca: vestido, sapato, joias, tudo vem de empréstimo pela mão de amigos vendedores. E a operária, cinderelamente, surge princesa. De dentro da limusine, olha apavorada a colega de trabalho. Socorro. Não vou conseguir. Isso é uma mentira. A outra encoraja, garante que é um sonho a ser vivido em nome de todas elas. Completa com sapiência: “Esta noite, a camareira é que é uma mentira”.

E não é? Tem noite, tem dia, em que a mentira é o nós de sempre. O nós por hábito, sem desejo nem reflexão. O nós que somos porque relapsos, porque indiferentes, porque preguiçosos. Porque conformados. Não era bem o caso de Marisa, a personagem de Jennifer Lopez – alegremente empenhada em suas funções. Era também mutilação, entretanto, que se compreendesse apenas como camareira, renegando sua princesice igualmente autêntica. Deceparmos nosso pianista, por ser o engenheiro eletrônico quem paga as contas; decapitarmos nossa recreadora infantil, por ser a advogada quem dá orgulho à família; sufocarmos nosso mochileiro, por ter sido o pediatra quem herdou o consultório – é o mesmo princípio de cortarmos a mão esquerda porque estamos habituadíssimos à condição de destros. Mentira não há em alternarmos porções de nossa verdade complicada (hoje professores de História, amanhã nadadores profissionais; ao meio-dia geeks, às 21h sambistas de gafieira). Há mentira, sim, em desencaixarmos o pedacinho de verdade do seu respectivo momento. Do seu respectivo decoro. E há mentira em tacar fora uma verdadice da qual simplesmente perdemos o manual.

Não digo e nunca direi que estamos aptos a sacar uma verdade da cartola conforme a paixão e as conveniências. Não digo que aceitemos nossos vícios e más propensões, condescendentes, sob a desculpa da autenticidade. Nada mais cretino. Uma coleção legítima de verdades nos deve asas, e não novos chumbos em nosso pé ou no alheio. Justificar traições, abonar cigarros e outras drogas, permitir irresponsabilidades de impulso – o uso do “respeito ao eu” nesse assunto não passa de charlatanismo. Respeitar-se, em todas as frentes, é também (é principalmente) não faltar à própria palavra, honrar a própria entrega, a própria decisão, o próprio grupo social, pulmões e vísceras próprias. Abarcar nossas realidades várias não representa amar os erros, mas exatamente as alternativas. Amar aquilo que deveríamos estar fazendo, quando decidimos nos emaranhar num atalho duvidoso para não fazer.

Amar a camareira enquanto formos camareiras; a princesa, enquanto princesas. Amar tão incondicionalmente nosso instante, e com tanta convicção e abandono, que tudo mais seja rematado absurdo. Faça-se em nós o necessário de cada noite, o honesto de cada dia, e acabou-se o medo. Que medo é nada mais que isso: não chegar ao fundo de ser carruagem por se crer abóbora.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Precisamos falar

Assisti a Precisamos falar sobre o Kevin, numa tentativa de me regenerar por não ter lido o romance tão elogiado pela Martha. Assisti já sabendo que iria sair destruída. Não me enganei. Por mais que tenhamos um interesse mórbido em histórias de psicopatas, é horrivelmente diferente ver Hannibal Lecter comendo miolos e o garoto do vizinho olhando com repulsa para a irmã caçula. Não me aflige ver Hannibal Lecter comendo miolos; pode nos dar um ou outro argh! nas imediações do estômago, mas nenhum soco de desesperança bem na meiuca. Hannibals são exageros, hipérboles, anomalias de cinema. O horror, mesmo, se enfia dentro do possível. Mora no provável. No conhecido. Em todos os sentidos, no familiar. Mora na “experiência” que seu sobrinho fez cortando o rabo do gato, na falsidade assustadora com que seu primo (um bully dos infernos) chora como pombinha quando os pais estão espiando. Mora no olhar petrificado, indiferente do seu filho.

A questão mais incômoda de Precisamos falar..., porém, a meu ver não está na psicopatia embrionária, no monstro ganhando corpo no quarto em frente. Está na raiva irracional dos não psicopatas, os que não nasceram desprovidos de moral e senso e, ainda assim – pela preguiça de verbalizar –, rebaixam-se ao nível dessas aberrações. Certo, Kevin é de natureza terrorista, um assassino; entretanto, na impossibilidade de puni-lo amplamente por seus atos, a cidade concentra na mãe do garoto (Eva, interpretada por Tilda Swinton – so-ber-ba) sua vingança irrazoável. Eva é a primeira, segunda e última das vítimas. A maior. Atormentada desde a gravidez depressiva, desde a infância sinistra da criaturinha, desde a solidão com que observava a tempestade se formando e não achava eco no marido babão. Desde o momento em que se tornou foco silencioso das crueldades do filho. Até o ponto do desgosto de se ver inútil para mudá-lo, inútil para proteger dele a caçulinha. Até o ponto da solidão, sim, oficial; a mais extrema.

Pois é este ser já tão chicoteado que os outros pais (e não pais) pegam para Cristo. Chutam cachorro morto. Xingam e esbofeteiam na rua, castigam com olhares de nojo emudecido, picham-lhe a casa de vermelho, quebram-lhe os ovos no mercado. Eva, a mais absurdamente traída, é o Judas, o boi de piranha. Por quê? Porque ninguém fala. Ninguém sabe falar. Ninguém quer falar que ali há uma mãe como tantas, como todas: incapaz de prever exatamente até onde seus receios estão corretos. Ninguém admite desconhecer o que ela possa ter feito para impedir a tragédia. Ninguém confessa a própria chance de ter, também, um criminoso dormindo em casa. Ninguém põe em diálogo – não em urros, não em agressões, mas em diálogo – sua orfandade emocional, sua empatia materna, seu desalento social, seu trauma irreparável, sua análise consciente, seu pânico definitivo. Colocar em diálogo é pensar sobre. Pensar sobre é desafiar o tabu. Desafiar o tabu do “herdeiro de maldade” é, no caso, vencer a injustiça, quebrar o ciclo de violência, cortar na raiz um ódio que nosso egoísmo infantil (mudo, surdo, analfabeto) perpetua.

Seja do que for, precisamos falar. E quando ainda não estivermos prontos para nos botar em língua de gente, precisamos não falar. Não falar com gatilho apertado e arame farpado na voz. Precisamos só falar quando a palavra for instrumento que amenize e não escarafunche a infecção do mundo.

E que o silêncio antes nos mate, se não pudermos ser melhores do que ele.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Amiga oculta

Na novela das seis, o atual namorado de Manu se vira para a companheira, encantado de vê-la sorrir com mais liberdade que de costume: “Sinto que tem muita alegria aí dentro”. Faz a declaração como quem dá um flagrante. Como quem diz um terra-à-vista. Ela retribui com timidez, algo vexada da manifestação que escapou. E volta, mesmo com doçura, ao seu ar de melancolia culpada, escondidinho no fundo do prazer pelo elogio.

Isso é o que somos nós, melancólicos: culpados. Qualquer alegria mais inteira vem sempre acompanhada da sensação de imerecimento, fuga, inadequação. Primeiro porque soa desrespeito à dorzita que pegamos para criar, e que carece de sombra e silêncio para continuar a nos entristecer devidamente. Segundo porque também a alegria do melancólico se alimenta de penumbra e silêncio, cresce no sossego e nas zonas úmidas, mansa, arborizada; o sol agressivo das euforias, das gargalhadas distribuídas aos potes, é uma violência à nossa felicidade comedida.

Em terceiro lugar, temos medo. Temos medo de que, se formos muito intensos no contentamento, muito exagerados no riso, muito exibidos na comemoração, assustaremos o motivo da festa, que sumirá feito passarinho. (Inconscientemente) enxergamos a satisfação como borboleta: coisa linda, frágil, quiçá breve. Não disse que os melancólicos somos culpados? culpados incorrigíveis, pisando macio no mundo para não acordar as ameaças que dormem. E, no entanto, na aparente tristeza acolchoamos o culto à alegria mais delicado. Protegemos o melhor dos momentos sob camadas de sorriso apreensivo. Celebramos a maior das datas debaixo de um isopor de prudência. É por reverenciar a alegria que não a ostentamos – como quem se poupa de usar o vestido favorito no mercado da esquina.

Antes de injustiçar um melancólico e sua amargura suposta, e sua felicidade invisível, lembre que é só gente sendo feliz devagar. Com o coração envolvido em plástico-bolha.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Chora, coração

O que nos choca não é a morte. É a morte quando já nos desacostumáramos dela.

Wando nos pregou essa peça. Esperou-nos sossegar contentes quanto a seu estado de saúde, ou bem gentilmente (como fazem os sedutores) garantiu nossa segurança antes de se ausentar. Levou nossa ternura à porta de casa e ali a deixou, confiante de sua recuperação, antes de dizer boa noite. O embuste generoso dos galãs. Só o tempo de uma última piscada.

Mesmo os que têm exclusivamente João Gilberto, Michel Teló, Andrew Lloyd Weber ou Mendelssohn recheando o mp3 não puderam saber a morte de Wando sem sangrar um pouquinho. Despudor tão maravilhoso não fazia inimigos; independia de se considerar cafonice, derramamento, exagero. Aliás, até por isso. O cancioneiro de Wando era a safadeza autorizada, higiênica. Era o recreio da Academia. O lado B matreiro e assumido da intelectualidade. O desafogo da psicologice, as férias da politização, do feminismo sisudo. Era a bobagem honesta, o romantismo malandrão que primeiro saiu do armário. A paixão sem neura – com camisola transparente de andar em casa.

Se eu gostava do repertório? Gostava (gosto) de “Fogo e paixão” e seu erotismo ingênuo, feito para gritar feliz em festa ploc, balançando os braços. Admito não conhecer suficientemente o resto. Não precisa. Quem canta a amada como “raio, estrela e luar/ manhã de sol”, quem se reconhece amado com a candura de um “me chama de céu”, já tem camarote no Olimpo. E ninguém torça o nariz à brincadeira das calcinhas: apenas uma licença, cortês, de o mulherio brincar de ser desejado. Um susto de autoestima antes de voltar à programação normal.

Beijão e até mais, Wando. Valeu ter chovido em nossa música um pouco de sins, e nunca de nãos. Você é luz.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Complô de alegria

Quem vê A vida da gente sabe que Vitória, ex-treinadora de tênis da protagonista, é uma azeda. Uma azeda profissional, em todos os sentidos. Não há chance de demonstrar alegria senão na carreira, e mesmo assim se a pupila da vez subir ao pódio, e mesmo assim se subir ao pódio não tendo cometido nenhum deslize. Frescuras como manifestação de respeito ao ex-marido, carinho às filhas, afeto pela aluna ou espírito esportivo nunca foram presenciadas. O jeitão Vitória cobra, exige, pressiona, atropela, humilha, ironiza, assedia moralmente, destrói pelas beiradas, bate-estaqueia uma autoestima. Tudo, claro, em nome de seu nome. Em nome da medalha, da realização, otimizações de tempo, êxitos palpáveis. Em nome do sucesso.

Pois não dizem que o sucesso do jogo se contrapõe à maçada no amor? Assim com a personagem. Mas não por fazer jus a ditados. Vitória simplesmente não faz jus ao mundo e a suas necessárias transpirações de vida. Vai além de merecer desamor: incorpora-o. Há, porém, uma particularidade nestes que são diques de amargura. Os que estão em volta, se não foram invadidos pela baía de fel (como os familiares de Vitória não foram), acham um meio de sobrevida, encontram jeito de desviar o curso. Unem-se numa Revolução Francesa particular, ainda que não ostensiva, ainda que silenciosa – ou principalmente silenciosa, que felicidade real não tem precisão de afronta. Fazem uma confraria de alegres, uma irmandade que exclui o ser azedo antes de renunciar à sua ração de sol.

Na novela, o complô dos felizes começa pela ex-aluna de Vitória, Ana, que não só cortou os grilhões como passou a treinar a filha da megera, Sofia. Duplo acinte. Triplo acinte: Ana ainda fez a ponte entre Sofia e sua meia-irmã Alice, abandonada por Vitória quando bebê e mais uma vez rechaçada na idade adulta. Sofia apresentou Alice à caçulinha e a irmandade (literalmente) aumentou. Para fechar a sociedade secreta de contentes, quem virou namorado de Sofia? O assistente de Vitória, Miguel, que inclusive perdeu o emprego pela “traição” profissional. Efeito colateral, OK. Nada que detivesse o ciclo inadiável, incontrolável de gente fluindo.

Verdade se diga: não há criatura com nuvem preta na cabeça, arame farpado no peito, cimento n’alma e iglu no coração que faça virar concreto armado a leveza do ser – a autêntica, a fundamental, a sustentável leveza. Nem o grito do sangue faz jedis, se jedis são, adotarem o lado negro da Força. Impossível contaminar de betume quem se decidiu passarinho. Por mais que, no calor da luta, tenha perdido um ou outro braço por dentro.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

As coisas belas

“Você é uma criança, Gilda” – diz, no filme homônimo, o personagem de George Macready para a de Rita Hayworth. – “Uma criança linda e gulosa. E eu me divirto alimentando você de coisas belas, porque você as devora com tremendo apetite.”

Gosto da citação porque perfeitamente a entendo. Minha diversão é também doar aos amados (e mesmo nem tão amados) o punhado possível de coisas belas no dia, a cota que estiver ao alcance. Ontem mesmo: a lua cheia. Quis pendurar os olhos da moça recém-conhecida na lua cheia, sabendo ou não se era gafe suspirar tão ostensivamente diante do luão balofo. Vai que a moça é alérgica a luares e eu lhe servindo aquela visão goela abaixo, incomodada com o desperdício de lua.

Gulodices, as coisas belas do estômago: outro problema. Eu mesma não mergulho em gulodices, mas não me conformo em flagrar um pãozito doce, uma bomba de chocolate obsceno, um muffin, uma focaccia, uma tartelete de morango, um croissant de presunto, sem imediatamente adentrar a padaria e trazê-los para o marido. Um ato temerário contra taxas de colesterol, sei; como resistir, porém, ao mimo delicioso de oferecer bons sabores? Felizmente não tenho crianças para deseducar.

Embora isso seja, metaforicamente, o essencial: ter crianças. Crianças gulosas de devorar, com tremendo apetite, as ofertas de coisa linda que povoam o mundo. Nada mais frustrante do que indicar a música preferida, o filme que é uma pérola, o livro que é de veludo, o poema que escorre caramelo; nada mais aflitivo do que preparar um bolinho, puxar pra exposição do Monet, vir com um DVD de presente, apontar deslumbrado a paisagem, sugerir o vestido perfeito – e achar do outro lado muxoxices da mais escandalosa indiferença, da maior inapetência para o que há de suculento. Para os intermediários compulsivos das coisas belas, anima ser correspondido com a fome que têm os pequenos procuradores de ovos de Páscoa, ou esperadores de Papai Noel. A fome descompensada das promessas.

Alegria dos que são bandeja é ter mão que mal possa esperá-los sair da cozinha.

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Bibbidi-bobbidi-boo

Hoje tem comemoração fofa na Gália: o Dia da Fada Madrinha. Pode acreditar, os gauleses se dão a essa homenagem curiosíssima. Estão certos, por que não? poucas figuras são tão queridonas e negligenciadas quanto essas consertadoras profissionais. Sem a figura de vovó adorável em Cinderela, que seria da cena de transformação do vestido – uma das mais catárticas já feitas? Sem a Fada Azul, que seria de Pinóquio e suas pinoquices mentirosas, eternamente de madeira? Sem Fauna, Flora e Primavera, que seria de Aurora e sua morte incapaz de virar sono? Fadas são o mundo vestido de mãe; suprem a cota de acalanto a que tem direito todo personagem órfão do resto.

O grande lance deste dia é que fada-amadrinhar é para todos. Deve ser para todos. Não só podemos como temos a obrigação de trabalhar como possibilitadores. Como facilitadores. Pontes. Lanternas que juntem uma criatura ao caminho que ela não enxerga. Tudo bem que não dispomos de varinhas cheias de salagadula, que não podemos criar roupas de festa instantâneas entre um bíbidi e um bóbidi. Mas podemos (não podemos?) reunir peças para os desabrigados das chuvas de janeiro, integrar o grupo de costura voluntária, dar cinco reais na rifa que garantirá o vestido da filha da manicure, cujo maior sonho é debutar. OK: não estamos aptos para transformar madeira em gente. Mas podemos (não podemos?) escutar com paciência as memórias de idosos esquecidos no cantinho; podemos dar aula num pré-vestiba comunitário; podemos instruir um cidadão anônimo a tirar sua certidão de nascimento; podemos um milhão de coisas que ajudem o outro a assegurar sua gentice. Está certo: não podemos evitar a morte com feitiços carinhosos. Mas custa (custa?) orientar desde cedo o filho a não dirigir se beber – ou não beber se dirigir? Custa zelar pelos pequenos (próprios e alheios) na escada rolante, na escada normal, na piscina, na varanda, perto do forno, da panela, da janela, da tomada, da tesoura, do botijão? Custa mandar lavar as mãos, olhar pros dois lados, não correr com vidro, não brincar com fogo, não botar na boca, não desafiar doença? Só custa se estivermos mais impossibilitados que Pinóquio de virar meninos de verdade.

Ser fada madrinha é que nem o América: o segundo time de todos. Não tem quem possa dizer que não nasceu para, mesmo por dez minutos, fazer o outro feliz pra sempre.

sábado, 4 de fevereiro de 2012

Para tão longo amor

Hoje (dizem) são lembrados os 488 anos do nascimento de Luís de Camões. A data é questionável, até a Wikipédia duvida. Irrelevante. Relevante é o fato de Camões em algum momento ter nascido, e, para minha alegria específica, ter escrito aquele soneto que narra a labuta de Jacó atrás do casamento com sua amada: “Sete anos de pastor Jacó servia/ Labão, pai de Raquel, serrana bela;/ Mas não servia ao pai, servia a ela,/ E a ela só por prêmio pretendia”. Por aí vai. Lindissimamente, Camões conta em versos o episódio bíblico no qual o patriarca, depois de ter trabalhado sete anos para o sogro a fim de desposar Raquel, foi enganado por ele e recebeu a irmã da gata, Lia. Qual a única solução? Pegar no batente por mais sete anos para merecer a beldade, lógico. Ora que pergunta. E lá foi Jacó; só ao fim de quase uma década e meia é que conseguiu a esposa desejada. Raçudo, o homem.

Pelo engenho de Camões e pela paixão incondicional de Jacó, o soneto tem um dos mais belos desfechos já construídos na literatura: “[O triste pastor] começa de servir outros sete anos/ Dizendo: – Mais servira, se não fora/ Para tão longo amor tão curta a vida!”.

Adoro sem reservas o último verso. Para todos os amantes é verdade, lamento, lema: tão longo amor, tão curta a vida. O amor (que assim mereça o nome) é sempre mais comprido. Sempre mais demandante, sempre mais insaciável do que lhe permite uma meia dúzia de cem anos. Amor não termina de ser; está eternamente em déficit, pendurado no cheque especial, inadimplente, devedor, ou antes: o tempo lhe deve. O amor quer – quer mais, quer muito, quer agora. O amor não sossega.

Não me refiro (necessariamente) a sexo, beijo, amasso, pele, às mais nervosas de suas manifestações físicas. Me refiro ao amor em si, em todos os exigentes meandros; inteiro. Me refiro à constatação diária, ciumenta, de que o dia acaba e o amor não. A gente não acaba de querer ver televisão com o outro, noite adentro zapeando e rindo – mas o despertador toca às 6h amanhã. A gente não acaba de querer embalar o outro em maravilhas: joias, flores, veludos, pelúcias, cremes, chocolates, açúcares – mas conta bancária e colesterol são rigorosos em seus limites. A gente não acaba de querer viajar com o outro para Orlando, Campos do Jordão, Paris, Niterói, Viena – mas cadê meses e moedas bastantes para encaixar aventuras? O mundo tolhe, amarra; o amor prossegue. Arregalado em suas fomes.

Tão curta a vida para lhe dar bons-dias, para beijar-lhe o nariz, para partilhar os cafés de hotel e as novelas das seis, para dormir no colo, para tirar foto, para pular nas festas ploc, para almoçar nos sogros, para brincar de arborismo. Tão curta a vida para escolher presentes, caprichar em embalagens, escrever cartões, deixar trufas, preparar bolos. Tão curta para dividir Sessões da tarde, para pegar sessões à tarde, para comentar do filme, para discutir a cena, para regargalhar a cena, para entender junto o final. Tão curta, tão curta para tudo que importa, tudo que – ao contrário dos impedimentos de expediente, cartão de ponto, folhinha, extrato bancário – mais interessa. O amor não cabe no tempo regulamentar do jogo. O amor não acaba de bater pênalti. O amor transborda.

Não há bodas de ouro, platina, tungstênio ou adamantium que deem conta da (exasperada) infindabilidade do amor. E coloquem o relógio em seu devido lugar.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Beleza involuntária

Já escrevi sobre os amores inesperados, aqueles que nos atropelam gentilmente com sua alegria de improviso. Há também os encantos inesperados, visualmente falando: as lindezas surgidas do improvável. A rua, a moita, a calçada pelas quais não se dá um níquel e que, no entanto, apresentam no susto uma cara de foto. De repente se enfeitam, posam. Um cantinho de coisa nenhuma mostra uma certa luz, uma determinada sombra, uma composição de cor impossível – e pronto: fico alumbrada.

Outro dia foi no trânsito. O carro parou quase à frente de uma varandinha velha, velha, prédio que por pouco não caía aos pedaços. Mas parou numa tal posição que, recostando a cabeça na janela do automóvel, a gente via a varandinha (em si feia, porém enfeitada de uma buganvília em flor) fazendo par com a torre da igreja de trás, e o céu azul costurando a tela. Um mimo de cenário, bem a gosto de autores românticos. Era bonito? originalmente não, ao menos da parte da varanda – caquética. A conjunção dos fatores e do ângulo é que botou formosura na cena. Típica beleza involuntária, fortuita, invisível, fadada no máximo a dois pares de olhos.

Sou, claro, tão arrebatável quanto qualquer um pela imagem de um Pão de Açúcar, por exemplo – o quadro óbvia e agressivamente belo. Orgulhosamente belo. Apesar disso, fico talvez mais comovida com essas belezas súbitas, de beira de estrada; belezas humildes porque não prioritárias, belezas que não cobram seu quinhão porque tímidas. Espantadas de terem sido vistas em sua identidade secreta. Não tímidas de acanhamento, exatamente, mas de existência despreocupada, sem cálculo e sem afetação.

Uma moça que vai na rua de estampa harmônica na roupa e adorno feliz no cabelo. Dois arbustos que por acaso se encostaram e floriram, ao mesmo tempo, cores diferentes. O braço graciosamente jogado de alguém dormindo. Um trecho de praia do ponto de vista de uma florzinha roxa, daquelas que se espalham feito fofoca. Uma borboleta que faz a sesta sobre a azaleia recente (aliás, bastava a borboleta). Um dente-de-leão despregado. Um muro de pedra com limo. Céu de tarde com nuvem rosa. Céu da noite sem nuvem cinza. Sol pondo amarelo no verde. Jambo pondo fúcsia na calçada. Árvore com cipó. Olhar com (muitas) pestanas. Beija-flor – em qualquer modo e posição.

Bonito é o que nos apaixona sem aviso, no mais afobado do horário comercial.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Tudo novo de novo

Eu lia um conto de Edith Wharton (autora que escreveu entre os séculos XIX e XX), chamado “Madame de Treymes”. Esbarrei com o trecho em que o protagonista masculino, John Durham, se dá conta do motivo de nunca ter tentado conquistar sua musa quando ainda era uma jovem americana solteira – e não uma dama francesa divorciada: “Era porque havia, com pequenas modificações, muitas outras Fanny Frisbee; enquanto antes nunca houvera, no seu horizonte, uma Fanny de Malrive”.

Por que somos (finalmente) amados? Quando? Quando somos novidade. Não é que apenas no início da relação sejamos atraentes, pela natureza de carne fresca. Nem que seja preciso saltar de parceiro em parceiro na busca febril de sangue inédito. Nada. Ser novidade não é, necessariamente, o ato de jamais termos aparecido. É a condição de refazermos nossa matrícula dentro do outro, de sermos admitidos sob um novo número.

A situação do conto o prova. Fanny era, para John, uma conhecida de anos; conterrânea, integrante de família amiga, desde sempre linda e adorável. Assim como ela, várias. Mas foi só debaixo das regras de alta classe francesa, debaixo de muito esforço de adequação madura, debaixo do tempo e da maternidade, que Fanny desenhou-se única. Virou surpresa. Virou descoberta exclusiva, ovo de Colombo. Virou promessa e desafio inesperados para John, depois de anos sendo belo quadro pendurado na rotina.

Se todos a quem recebemos, recebemos como (boa ou má) surpresa, é também só como (boa) surpresa que efetivamente amamos. Abraçamos qualidades e defeitos; mas, óbvio, é o frescor das qualidades que nos ata – amar é caçar para nós uma primavera portátil, um nirvana de bolso. É inaugurar nossa América, encontrar quem ateste nosso talento de descobridores. No fundo, é disso que corremos atrás: da pedra que nos diplome como garimpeiros eficientes.

Admirar a preciosidade alheia é flagrar nosso bom gosto tendo um caso com o espelho.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Mil e uma utilidades

Hoje é dia de outro mágico – o publicitário. Devo muitão a esses profissionais que transformam uma qualquer-coisa em lembrança e desejo. Devo, aos comerciais, memórias tão enraizadinhas quanto as plantadas por filmes, novelas, séries. Devo, aos jingles, recordações tão musicais quanto as de bandas e trilhas sonoras. Nosso mundinho capitalista tem isso de bom: de tal forma precisa de nós em prontidão de comprar, em ponto de consumir, que nos seduz com preliminares e capricho – o bastante para colocar a propaganda em nosso álbum de afetos.

Anúncios feitos há quase duas décadas dos quais ainda repito palavra por palavra (“Adolfo! Adivinha o que eu comprei! Um aparelho de som!!” – “Heeeeeeein??...” – “Som! Vitrooola!” – “Heeeeeeeeeein??...”). Músicas popíssimas nas quais fui inaugurada entre um bloco e outro de novela (“Nada do que foi será/ de novo do jeito que já foi um dia...”). Mamíferos Parmalat que povoaram o quarto, depois de trocados por uma quantidade alucinante de códigos de barra. Formiguinhas voadoras que nos obrigaram a rir, porquinhos que nos puseram dançando o chá-chá-chá, hits que cantaram a delícia da pipoca na panela, meninos que nos convenceram a salivar pelo brócolis. Slogans que não nos permitiram esquecer nossa Caloi, deixar de comprar Batom, de fazer do leite uma alegria. Lipídios, glicídios, protídios, cálcio, ferro, fósforo, vitamina A, dois hambúrgueres, alface, queijo, molho especial que despertaram o tigre em nós. Ai, que vontade que dava! impossível comer um só depois de um be-a-bá be-e-bé be-i-Bi-otônico Fontoura. Tomou?...

Tomamos, que sede é tudo; obedecemos à nossa sede. E voltamos às aulas menos infelizes, por saber que numa folha qualquer podíamos desenhar um sol amarelo. E voamos nas asas da estrela brasileira, de norte a sul – toda criança tem uma estrela dentro do coração. Não tem, tio? Descobridores dos sete mares, navegar queríamos. Queremos. Era (é) preciso. Mas desses primeiros amores a gente nunca esquece.

(Quero ver você não chorar.)