terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

De propósito

Fui ver A invenção de Hugo Cabret e gostei mais do que devia, a julgar por alguns críticos e críticas não muito entusiastas. Fazer o quê? é absolutamente adorável, de modo especial para quem tem apetite incontrolável de cinema e(m) seus primórdios. Foi uma das poucas vezes em que chorei racionalmente na sala de projeção. Chorei com menos coração que cabeça: uma lágrima pelo novo mundo flagrado em cueiros.

Entre fotografia lindíssima (tons de sépia numa boa parte, com cores vivas quase pintadas à mão), som e efeitos precisos, roteiro previsível mas charmoso, elenco pescado a dedo, o que mais me alfinetou foi o trecho no qual o pequeno Hugo compara um personagem deprimido a uma máquina quebrada; nenhum dos dois está cumprindo seu propósito. Quem sabe eu não possa consertá-lo, pensa o garoto com ambiciosa fofura. O propósito de Hugo é consertar – gentes e engrenagens. Sua interlocutora suspira não conhecer o propósito de si mesma. “Se meus pais estivessem vivos, talvez eu soubesse.”

Se nossos olhos estiverem vivos, talvez saibamos. Talvez notemos se somos máquina de escrever ou instrumento de dar aula, se somos geladeira de conservar memória ou fogão de descongelá-la, se somos câmera de captar o mundo ou arado de revolvê-lo. Talvez percebamos se somos cavalete de dar base, se somos tela de servir à beleza, se somos pincel de acordá-la, se somos moldura de destacá-la. Talvez identifiquemos se somos ventilador de aliviar, carro de conduzir, espelho de relatar, microfone de amplificar, massageador de reduzir, microscópio de buscar, telescópio de trazer. Talvez nos revelemos como avião, pulseira, estrela, modem, grade, janela, ponte, DVD, filmadora, troféu, brinquedo, holofote. Talvez sejamos potenciais chaves de fenda. Talvez sejamos vocacionados tijolos. Ou cimentos. Ou chuveiros. Ou azulejos. Ou cadeiras. Ou almofadas. Ou interruptores. Somos todos objetos de propósito, justinho, para alguma função e feito.

Que é o modo único de ser sujeito.

2 comentários:

Fernando disse...

Fernanda, minha chará, já estava com saudades das suas postagens.
Bom, ainda não vi o filme, mas a sua interpretação foi fenomenal... Tudo é mesmo uma questão de percepção e observação do que está a nossa volta, entender o que somos e para o que somos. Que graça teria estarmos vivos sem que tivéssemos um propósito em nossas vidas ou na vida de outras pessoa e o ambiente que nos cerca?
Um super abraço e muito sucesso!

Andy A. disse...

É um dos poucos filmes do Oscar que eu não ví e estou louca para ve-lo e sua postagem aumentou ainda mais a vontade ...
http://andyantunes.blogspot.com/