sábado, 28 de abril de 2012

Nas horas mortas da noite

É como principia um poema de meu amadíssimo Casimiro de Abreu, paixão literária desde que descobri ser gente: “Nas horas mortas da noite/ Como é doce o meditar/ Quando as estrelas cintilam/ Nas ondas quietas do mar” – por aí vai. Versos do texto “Saudade”. O que importa é que as tais “horas mortas da noite” sempre me plantaram dúvida. Dizem-nas mortas (não só Casimiro como quase todos os viventes do dia) pelo silêncio em que transcorrem; porque não estão imersas na bagunça do trânsito, porque não têm hora de rush, não têm azáfama (gosto tanto dessa: “azáfama”!) de expediente, não têm pregões de camelô ou Bolsa, não têm apito de guarda ou escândalo de birrentos voltando da escola. Noite, noite mesmo – não as primeirinhas horas, mas nooooooite de já terem todos escovado os dentes e visto a novela –, é vazia de gente, e daí a calúnia de lhe atribuírem morte. Qual nada. É a princípio triste ver a cidade fechando as portas, as opções de divertimento e lanche ficando limitadas, o mundo perdendo aquele montão de possibilidades humanas. Até é. Uma vez feita, porém, a transição da tarde barulhenta para a noite convicta, uma vez a gente se reconformando em estar consigo mesmo, aquele que permanece de pé após tudo tombar de sono constata: é quando se ouve o planeta finalmente respirando de vida.

À noite dormem movimento e barulho, e no entanto despertam, corujamente, as verdades verdadeiras que conveniências, urgências e convivências nos impedem de encarar em horário comercial. A não ser que continuemos a serviço, despimos as máscaras compulsórias. Encantamentos e desencantamentos decantam; felicidades e desgostos que permanecem em suspenso ao longo dos afazeres, misturados no turbilhão, pousam no chão da gente e se deixam ver nuzinhos. Quietos. Íntegros. Conseguimos ter a medida da sorte de o amado ou o filho dormir ali, lindamente desarmado; examinamos em silêncio o tamanho da ferida deixada pelo grito injusto, pela crítica fulminante, pelo incidente de assalto, pela ofensa que soou passageira como a pontinha do iceberg e nos rasgou a modo de Titanic. Só na limpeza total, na suavíssima desintoxicação do trabalho, do metrô, da britadeira, da conta de luz, do chilique da filha de castigo, percebemos alegres – ou com a consolação da autenticidade macia, solitária – o que sobra de nós no fundo da vida que subestimamos, empurramos, maquiamos, engolimos. O que somos depois de manhã e tarde nos tentarem espremer o sumo.

Coração da gente ecoa no dia o que (lhe) é devido. A noite nos coa.

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