sábado, 14 de abril de 2012

O inafundável

Hoje faz um século redondinho que o velho Titanic – todo gloriosão em seu tamanho inédito, todo besta de sua inafundabilidade – esbodegou-se num iceberg e afundou. Pronto. Fim da viagem primeira e última, de quatro dias. Fim da propaganda espaventosa, do luxo que não combinava com as mais simplinhas regras de segurança descumpridas, como o número (muito) insuficiente de botes. A falar verdade, não lastimo que aquele monumento à autocomplacência humana, aquela Torre de Babel deslizante, tenha escorrido ralo abaixo com seus lustres e louças e carraras e muranos; não ele em si; e gosto tão mais que haja desaparecido quanto mais balofo de pedrarias era. Quanto mais tafulhado de orgulhos ocos estava. O que lamento é a carga de valor perdida, a única: mais de 1.500 almas que largaram o corpo afogado nos andares do navio ou congelado no freezer marinho. Fosse apenas um morto, já seria um desastre histórico. Colapso planetário. Do jeito que foi, acabou de acabar com a infância do mundo – que, dois anos depois, já entrava ferido na guerra.

Não sei o leitor, mas duas situações do Titanic (retratadas no filme de 1997, e provavelmente verdadeiras) me impressionam em especial. Uma é a imagem do casal de velhinhos consciente de que seria improvável conseguirem enfrentar o aguaceiro e arrumarem vaga em algum barquinho salvador. Ficaram então os dois na cama, abraçados entre si e abraçados à própria finitude, aceita com apreensão, claro (que não eram de ferro), mas também com a solidez das despedidas maduras. Eles se amavam, amavam com certeza o que andaram erguendo pelas décadas, e por isso não quiseram arriscar-se a morrer como dois depois de terem vivido feitos um; temeram acabar em horas diferentes o que haviam começado em uníssono. E esperaram. Coladamente. Mais um bilhete de viagem comprado em parceria. Quem não mentiu no altar, quem casou por dentro e por fora, quem não concebe o mundo castrado de seu amor de pouso, quem se veria despejado do planeta sem o outro coração que é seu endereço, entende. Faria talvez o mesmo. Não havendo a menor chance de flutuarem ambos, preferiria consolar-se na constatação de que ambos afundariam. Mas prosseguiriam como “ambos”, on and on. Inafundáveis.

O caso que mais me assombra, no entanto, é o dos famosos músicos. Os tais músicos do Titanic, que devem ter pressentido, também, quanto seria improvável a sobrevivência. E aí decidiram tacitamente permanecer ali, unidos e superiores no meio da confusão. Tocando. Tocando. Tocando. Fazendo o que faziam de melhor, abençoando com últimos pingos de beleza o horror inevitável, embalando em violinos a grosseria do pânico. É sobre-humano, quase, o ato de abdicar do instinto pelo senso extremo da delicadeza; abrir mão do medo – até do medo, fome tão primeira e tão autoprotetora – em nome do amor absurdo à própria missão. Não foram heróis de dar vida a ninguém; foram heróis de botar dignidade numa história de abandonos e negligências, heróis de deixar de ser uma qualquer-coisa para serem plenamente si mesmos, ao cúmulo. Heróis de largar uma promessa de morte pra lá e prosseguir on and on.

Inafundáveis.

2 comentários:

Diego! disse...

Os músicos, apaixonados pelo que escolheram fazer da vida, honraram a arte e suas vidas dando som a tanto desespero. Assim deve ser os verdadeiros artistas!

Pablo de Tarso disse...

http://www.youtube.com/watch?v=yPLcZ5Rk3Lg

Uma sena muito marcante do filme