sábado, 12 de maio de 2012

Infinito enquanto dure

Domingo passado, o consulente do psicanalista Alberto Goldin, na Revista dO Globo, era um Leonardo viúvo de 53 anos, com duas filhas universitárias. Duas filhas universitárias, uma esposa precocemente falecida há três meses, uma Estela de 43 anos – que muito o tem apoiado neste momento de perda – e o seguinte to-be-or-not-to-be: “Será que é hora de refazer minha vida? Será que realmente existe tempo para ser feliz?”.

Atualmente, Leonardo e Estela ocultam o namorico das filhas do viúvo, pela natural delicadeza de não lhes impor “madrasta” que seria vista como substituta desesperada. Entendo e admiro a consideração gentil pelos sentimentos das meninas, provavelmente ainda chorosas e tendentes a buscar conforto numa família coesa feito monólito, fechada para balanço, sem vagas para quem seja estranho à dor. Isso de luto é coisa que se inclina mesmo para o íntimo, e em geral é vivenciado em gangue, em seita: aqueles que perderam o ser querido passam tempos chorando juntos, lembrando juntos, conversando em iguais risos e silêncios quando os olhos de cada membro encontra um objeto ou memória do falecido, cujo valor só se compreende dentro dos limites da irmandade.

O problema dessa irmandade fraterníssima, entretanto, que tamanho aconchego traz aos órfãos da mesma saudade, é o inconveniente de uma saudade não ser sempre contemporânea da outra, siamesa infalível, com semelhantes começos e fins. Vai que um dos coraçõezinhos rompe o pacto, por ser mais solar, mais impaciente ou menos talhado para longas tristezas, e principia a ver novas luzitas antes dos demais. Pronto. Eis instalada a batalha de culpas e egoísmos. E a praxe é qual? que a dor sacralizada pela morte, com o aval de quem partilha ou não partilha o luto, se sobreponha em direitos à alegria espontânea de quem vive, de quem precisa viver, de quem já tem as asas secas (mais cedo) do período de enchente. Nós – embora frutos de sociedade viciadíssima no próprio prazer – nós ainda guardamos o “respeito” apavorento pela morte, sobre todas as coisas. Ainda soa leviano ter a audácia de substituir o terror à solidão pelo impulso orgânico de companhia, todo trabalhado na primavera. Ainda soa mesquinho ter a ousadia de não submeter seu calendário mais robusto e resistente ao calendário escuro e invernal dos que sentem os desesperos mais fundo. Ainda cheira a pecado humano, familiar, social escapar-se dos rituais visíveis do luto para completar os seus próprios, invisíveis, e tão autenticamente completá-los a ponto de ainda achar tempo para ser feliz mais cedo.

Não sei se é real ou improvisado o amor de Leonardo e Estela. Importa pouco em nosso caso. Importa, aqui, o (triste) conceito: a culpa infinita de quando o adeus não dura, a obrigatoriedade maior de cumprir para os autos a lamentação e(x)terna do que de inundar os arredores com a alternativa que transborda. Alegria (que não é digna de pena como a histeria, mas convictamente serena) ofende. Felicidade ofende. Pega mal viver com tanta certeza e tão em voz alta quando há quem morra.

Axioma dos invernais, parece. Só se pode ter vida infinita enquanto é dura.

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