domingo, 20 de maio de 2012

Quem somos sem nós

Em Cheias de charme, Rosário (Leandra Leal) andou tendo suas desilusõezitas com o universo musical que sempre lhe foi objetivo de vida. Inácio, o namoradão Ricardo Tozzi, até curtiu: não compartilhava nem um tiquinho os quereres da amada, concentrado que estava em tê-la guardada para si, estrela exclusiva. Deu força para o outro talento da guria – a arte das panelas. Ela voltou ao bufê onde trabalhava, aparentemente curada da fome de palco. No capítulo de ontem, porém, em conversa com o namorado, referiu-se ainda à música (saudade na voz) como “meu sonho”. Ele observou com tristeza que ela nunca desistiria do projeto original, né? Ah, não é de uma hora para outra que uma pessoa se desliga do sonho de infância, plano de uma vida inteira, endoçurou a ex-empreguete. Tinha meia razão. Sabe em que momento, só, nos desfazemos do tão longamente pretendido, do tão compridamente desejado em noites de estudo e vigília, em dias de olheira e pensamento fujão?

Nunca.

A gente nunca abandona o primeiro profissional em que se transformou de verdade, se de verdade (íntima) se transformou. A gente nunca se divorcia do primeiro alumbramento, ou, se não do primeiro, do mais penetrante, do mais contínuo. Impossível renunciar a uma missão autêntica sem amputar-nos no eixo, sem nos dilacerar lá onde existimos mais por inteiro, e sem levar de arrastão uma tonelada de alegrias e características periféricas. Abdicar do sonho mais querido é esperar que a árvore continue de pé, em franco crescimento, depois de extirpado o detalhe da raiz. E importa pouco que o objetivo recaia no surreal ou impossível, porque damos jeito de modelar os entretantos sem alterar os a-prioris. Mudam as manifestações; a essência não muda.

Porque amadurecemos, aceitamos crer que nosso talento para futebol é mais de gosto que de fato – mas o atleta (que gostaríamos de ter vocação para ser) vira o comentarista apaixonado, o treinador genial, o jogador de vôlei que arisco se escondia sob aquela vontade de bola. Porque ganhamos mundo e autocrítica, sabemos que não nos veio altura nem boniteza para concorrer a top model – mas o símbolo de moda e beleza que somos por dentro vira a blogueira VIP no universo fashion, a bordadeira habilidosa, a artista plástica de olho clínico para semitons, a manicure com estrela de Michelangelo, a estilista da coleção gracinha para pequerruchos. Porque reconhecemos que nossas relações com Física e similares não são das mais amistosas, desistimos dos delírios de astronauta infantil – mas o Buzz Lightyear que em nós vive, até o infinito e além, nos desvia do céu para fazer-nos escarafunchar terra, corpo, oceano, alma, web (para fazer-nos arqueólogos, médicos, marinheiros, psicólogos, designers, por que não? escritores); ou, diferentemente, nos mantém suspensos no ar como acrobatas ou paraquedistas. Talento não se desvia: se encontra. Se entende. Se aprimora. Sai da caverna para entrar na vida.

Então podemos considerar-nos futuros veterinários, que a pulsão de acompanhar os indefesos um dia nos revelará assistentes sociais; podemos nos ter como virtuais bailarinas, que mais tarde essa paixão do teatro nos indicará como reais violinistas; podemos nos planejar advogados, que alguns anos deixarão nossa ternura pelos argumentos mostrar-nos professores; podemos nos imaginar pesquisadoras, que uma necessária lua de mel com o nosso amor ao esforço, às minúcias, nos formatará depois como superdonas de casa. O que vocacionadamente somos não nos foge, não morre; transmuta-se, como a velha máxima da energia. Sem nós – sem esse primitivo nós que projetamos, o de nossos idealizados futuros –, somos ainda e sempre nós mesmos, a não ser que decapitados de qualquer instrumento cerebral de desejo. Somos nós, ainda que com aparente revolução de panos e planos. Somos nós, a despeito da suposta traição aos interesses legítimos. Não há esquecimento: há maturidade, há (no bom sentido) acomodação. Realocação. Pouco em nós se cria; nada se perde.

Tudo se reforma.

Nenhum comentário: