segunda-feira, 25 de junho de 2012

Ainda que tardia

Não sei se é só comigo. Se, como os cachorros, eles tendem a ficar iguais aos seus donos. Mas irrita: por mais que os adiante, todos os meus relógios dão de atrasar. Todos. Cretinos. O de pulso, o de cabeceira, o da cozinha, de corda ou bateria, ponteirudos ou digitais. Por que os adianto? Claro que para minimizar a chance de eu me achar demasiado confortável horariamente, o que pioraria o atraso sempre inevitável. Problema é que eles sacaram direitinho, os danados, e não se deixam mais enganar: metem uma de joão-sem-ponteiro e vão mansamente corrigindo o superávit de minutos a que os obrigo.

Problema, mesmo, é que também não me engano não.

Agendo os relógios para quinze minutos à frente, porém falta o essencial para completar a mentirinha: falta que eu a esqueça. Pois nem de longe esqueço e já consulto a hora fazendo os devidos descontos. Adianto o relógio; o truque não me adianta, em qualquer possível sentido. Tenho o que se pode chamar de alma protelante – aquela que não se conforma em dedicar aos preparativos mais que o estritamente necessário, a não ser que se esteja falando de providências superiores, em delícia, ao próprio ato. Comprar e embalar presente, por exemplo. Preciso estar em tempos muito atribulados para não me enamorar carinhosamente da busca, da escolha, da decoração estudada, e fazê-lo com antecedência de ficar prosa. Em quase tudo o mais, adio. Enrolo. Empurro. E, ainda quando inicio as preparações com algo que pareça antecipação, subestimo sempre a capacidade infinita de exceder em quarenta minutos o tempo de sessenta reservado para a – permitam-me o termo tão old-fashioned e tão gracioso – toilette. Como é impossível a uma mulher razoável concluir todas as preliminares em menos de quatro horas, e como não me animo a ceder senão uns exíguos noventa minutos, é sensato apostar que a conta não fecha. Eis-me eterna inadimplente de um SPC cronológico.

Se me perguntam o porquê dessa mania bizarra de protelar, garanto com sinceridade que não sei. No máximo desconfio. Desconfio das mesmas razões que me movem à desorganização, as tais surpresinhas; desconfio que, se escolho a roupa de sair com exagerada precocidade, tiro-me o gosto do inusitado, a diversão ou a coragem de vestir algo que só a pressa justifica – não algo ousado, diga-se; algo separado para a ocasião especial que nunca chega, e só vai pra rua sob a alforria da velha desculpa: “estava tão atrasada, botei a primeira coisa que me veio à cabeça”. Desconfio, também, por continuidade de raciocínio, que atrasos me salvam dum sofrer maior que o desgaste da correria: os terrores do questionamento. Se me aprontei como devia, se estudei o que podia, se enfiei na bolsa o que carecia – tudo a urgência lava e abona; todo remoer se esvai na consciência de que era a única decisão a ser tomada, o único traje a ser posto, a única coisa a ser feita no calor atabalhoado do momento. A ação em circunstância terminal nos permite o autoperdão que o excessivo tempo de pensamento não daria. No fundo é o que queremos, e os perfeccionistas (mais do que todos) desejamos; no fundo esperamos que a iminência do caos nos sequestre de nós mesmos.

Aos que a ansiedade orgulhosa atormenta, só o desespero os cura.

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