sexta-feira, 29 de junho de 2012

Anos de alma

“Mamãe, minha alma não tem dez anos”, declara o filhinho de Clarice na mesma crônica que citei no post anterior. “Quanto tem?”, ela quer saber. “Acho que só uns oito.” “Não faz mal, é assim mesmo.” “Mas eu acho que se deviam contar os anos pela alma. A gente dizia: aquele cara morreu com 20 anos de alma. E o cara tinha morrido mas era com 70 anos de corpo.”

Dou braço ao herdeiro de Clarice (que definitivamente teve a quem puxar): é disparate calcular por rotações e translações, por involuntária cronologia alheia, o que só se conta por calendário intransferível. Às vezes botamos adolescência por mise-en-scène – externamente colecionando ficadas e gritinhos idolatrantes ao galãzote de cinema –, quando a alma não acabou de brincar de boneca, de ter curiosidades mirins sobre beijo e sexo, de se espantar com a existência de obrigações e impostos, de precisar do sorriso da mãe pra cada blusa ou acessório comprado. Às vezes recebemos a carga inesperada de oitenta anos e, comportadamente, escondemos o fogo superior ao dos trinta que nos atiça o(a) novo(a) vizinho(a); nos conformamos em sepultar a eterna gana de viajar solitários, de fazer arborismo, de programar computadores. Às vezes completamos sete anos e guardamos uma gravidade e uma preocupação ambiental dos –enta. Às vezes casamos apavorados aos vinte e três, e é só casar pra sermos apresentados em nós a alguém com serenidade de bodas de ouro. Ou casamos aos cinquenta, romantiquinhos de tudo, e de repente nos descobrimos criaturas com ciumecos de treze. Corroborou-o Caetano Veloso, em sua coluna global de domingo retrasado, quando o Segundo Caderno celebrava os setenta-anos-este-ano de Gil, Milton, Paulinho da Viola e Caê: “Mas, para mim, adolescentes são mais alegres do que crianças. Acho que sempre achei isso. Desde que era criança. [...] Percebi que a idade adulta traz ainda maior firmeza a esse gozo da autonomia, mas o florescer dessa ventura ficou para sempre ligado, em meu imaginário, à puberdade. Então posso dizer que sempre fui adolescente. Quinze anos é a minha idade. Talvez 14. O resto são marcos exteriores que não me dizem respeito, como esse número 70 que a gravadora e meu escritório de produção colaram em meu nome no site que rola na internet”.

A idade externa cola em nosso nome. Colam-na em nosso nome. Estabelecem-na em nosso nome. É terceirizada. A idade real é da boca para dentro: se espanta de constatar que já faz vinte anos da música que tocou no rádio, que já faz dez da cerimônia de formatura, porque só andou uma esquina desde a meninice e a mocice – e olha pra trás com vividez e frescor de ontem. A idade real é o tempo “nárnia” que nos amadurece violentamente no meio de uma peça de teatro, just because, só porque se completou o período de preparação mental indefinida por número de séries escolares ou quantidade de réveillons. A idade real é vai-volta, nem sequer fixo; é gangorra de ser muito jovem profissionalmente e muito idoso no campo da apreciação artística; muito nhenhenhizado na administração de uma casa e já matusalém na composição musical. A gente engravida de uma pancada de gestações, a gente incuba uma tonelada de nós-mesmos – cada embrião é uma lógica individual do todo imbuída de sua própria lógica, seu próprio enxoval, seus próprios nove meses, seus próprios requisitos. Cada pedaço de nós nasceu (quiçá morreu) num dia, num papo, num almoço. Cada eu que nos forma pesa na gravidade e respira nos ares de seu próprio planeta, iluminado ao sol de um novo (seu) mundo.

Feliz aniversário a cada porçãozinha interna que hoje, primeira vez, vos respira e abre os olhos. A todas, muitas felicidades. Às melhores, muitos anos de vida.

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