quinta-feira, 28 de junho de 2012

Contente o suficiente

Na adorável crônica “Dez anos”, Clarice narra um dialoguinho entre mãe e filho – entre provavelmente ela mesma e um seu filho. O pequeno está amofinado com a responsabilidade de aniversariar no dia seguinte, arredondando a idade do título: “Mas, mamãe, eu não aproveitei bem os meus dez anos de vida”. “Aproveitou muito bem”, rebate a (supostamente) autora. “Não, não quero dizer aproveitar fazendo coisas, fazendo isso e fazendo aquilo” – o guri esclarece de pronto. “Quero dizer que não fui contente o suficiente”.

Contentes o suficiente: essa é a regra. Essa é a régua. A que precisamos sacar do bolso, da bolsa, quando nos matarem de inveja contando as aventuras de sua infância na fazenda, de sua vizinhança que parecia novela do Maneco, de sua viagem no Expresso do Oriente, de sua moradia às margens do Sena. A que carecemos ter a postos, rente e segurona, quando revelarem estar cursando doutorado em Bioinformática diante de nossa mediocridade acadêmica. A que necessitamos manter pendurada no pescoço quando exibirem formas e closets na Caras, despudorados, perfeitos. Essa é a régua; esse é o horizonte; essa é a vibe em que a gente (se esperto) mergulha, pra continuar convencido de que vale a pena “se ser” – enquanto o povo todinho parece empenhado em ser coisa tão demasiadamente melhor.

Certo, certo, concordo em não ter sido neta de Dona Benta nem brincado na rua com uma multidão de amizades ainda existentes, crescidas de portas abertas. Mas quer saber? criei-me netíssima de Dona Benta, não menos legítima porque imaginária, e brinquei tanto em mim mesma que não seria razoável supor uma meninice tão feliz se cercada de mais zoeira e menos individualidade. Fui contente o suficiente. Não tive play nem coleguinha de dormir em casa, mas tive quintal, praça com balanço e cavalito no domingo, cinema e casa de chá no sábado. Não tive o colégio mítico da professora Helena, não estudei com o pequeno Nicolau, mas vivi a escola e seus benefícios com o necessário afeto e plenitude. Não tive bicho de estimação; mas recolhia formigas, fiz-me visceralmente ligada ao jasmineiro e à azaleia, pegava cisma amorosa em objetos como palito de fósforo, dado, correntinha. Não precisei de efemérides externas, de episódios literários, para ter garotice povoada de inesquecibilidade e lirismo. Não precisei de roteiro alheio, de felicidade estabelecida pelo senso comum, de selo com aprovação coletiva. Fui contente o suficiente. Fui contente para mais de metro.

Sou contente para mais de légua, agora livre das matemáticas e físicas que azedavam a escola (nunca fui das que acreditam que não se pode ser tão feliz quanto na infância; não me enganei). Contente o suficiente, mesmo sem ter ainda assistido ao Fantasma ou conhecido a Europa – porque fui de uma disponibilidade completa em cada viagem. Contente o suficiente, mesmo sem ter grande número de diplomas que profissionalmente me atestem – porque fui dócil a perceber o tédio e a angústia provocados pela teoria interminável. Contente o suficiente sem o salário dos sonhos, sem o investimento na Bolsa, sem a ousadia da moda, sem a iCoisinha do momento, sem a totalidade de experiências e perfeições. Contente porque sou, no dizer de Ricardo Reis, “toda em cada coisa”. Porque tive a sorte de habitar minhas próprias venturas. Porque tive o dom de morar bem razoavelmente na linha do tempo que se atou a mim.

Contentes o suficiente: sermos, por nós, tão estranhamente amados. E correspondidos.

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