sexta-feira, 1 de junho de 2012

Impregnados de medo

O Segundo Caderno dO Globo de hoje aponta: fomos, os brasileiros, retardatários ao extremo em começar a encarar de vez nossa ditadura passada, finalmente lançando os primeiros filmes – e produções similares – que enfiassem o dedo no horror. Explica Silviano Santiago que não houve aqui a premência de Chile e Argentina, onde a ditadura foi mais violenta e, por isso, a reação artística se deu naturalmente mais forte. É fato. Parágrafo após parágrafo da matéria, outras análises se desenrolam; somos malemolentes, somos varredores de problema para o tapete, era como que feio falar daquilo, queríamos rápido esquecer. Porém enterneceu-me mais a observação do jornalista Flávio Tavares sobre o período: “Mesmo depois da abertura, a sociedade brasileira ficou impregnada de medo. A arte tinha liberdade, mas não estava mais acostumada a exercê-la. Havia uma vigilância indireta ao pensamento [...]. Não havia como se acabar com o terror de uma hora para outra, por decreto. [...] Para esse exorcismo, a Comissão da Verdade será fundamental”.

Coisa oleosa e traiçoeira, o medo. Uma vez que entre a valer, que escorra pelos nossos cantos – e ele entra com a velocidade milimétrica do vírus, aproveitando a menor ferida como portal –, tão gorduroso se espalha que não há lavá-lo com o sabonete mais terapêutico; deixa sempre sangue, digital, cabelo, fibra em nossas cenas de crime. O medo, péssimo conselheiro que é, sobretudo nos convence de nossa inadequação e nos coloniza com a ideia (pior: com o sentimento) de que liberdade é montanha-russa radical, mero brinquedo que se admira de longe mas no qual só ingressam doidos imprudentes. O medo nos faz invejar a nós mesmos em momentos anteriores; nostalgia excessiva de tempos míticos, de infâncias projetadas em nuvens, é sintoma inconfundível do mais entubado medo de espelhos ao redor. O medo nos deixa perdidos ou amarrados na realidade; porque temos ME-DO!, ou negamos a existência do caminho, ou só o percorremos empurrados. A maior metástase do medo é justamente nos amputar de autonomia, nos castrar de vontade, e delito mais cruel: nos cegar para alternativas. Pessoas em que se incute o medo crônico são como os dementados do universo Harry Potter: seres virtualmente incapazes de enxergar cenas felizes no futuro.

Isso resume. O medo é um ladrão de futuros. Um arrombador de tranquilidades que nos prende, para sempre, ao instante do arrombamento – Dia da Marmota emocional. Do primeiro segundo do trauma em diante, vive-se em torno de apagá-lo ou reacendê-lo. Somem agendas que não sejam as do horror ou de paraísos imaginários. O medo nos injeta um parasita que nos instrui a odiar-nos. O medo nos enche de fatalismos não digeríveis.

O medo nos coloca na eterna, inútil defesa daquilo que já perdemos.

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