quarta-feira, 13 de junho de 2012

Lagartixas

Não estou sozinha no horror às cujas, e para tanto nunca precisei do pele a pele. Olhá-las dá quase arrepio de tato. Para começar são cadavéricas, as bichinhas, daquela palidez molenga e nojosa de pós-morte. Não bastante, vê-las brincando de Spiderman dá imediata certeza de coisa grudenta – e a cor de defunto só faz sugerir que a temperatura não destoa da cara. A cauda de impulsos frenéticos, então? A impressão piora diante da mania de andarem trepadas: gera uma sensação terrível de que mais hora, menos hora, vão desabar dali súbitas, em cima de nossas cabeças distraídas. Sempre achei que morria (ou ficava emocionalmente imprestável por décadas) se recebesse o mínimo contato daquele visco ambulante no meio de qualquer acontecimento. Não pelo contato em si, mas pelo... vá: pelo contato em si. Pelo contato e pela eterna nudez de despreparo. A gente não cria defesa contra o susto dos maiores temores.

A gente não cria defesa contra o susto; mas o susto, mesmo, não deixa de ser defesa em relação ao conhecimento mais longo, àquele liberto de cômodo preconceito. A lição vem num trechinho da dulcíssima “Pequenas ternuras”, crônica de Paulo Mendes Campos, em que o autor enumera todos os que são “presidiários da ternura, e, mesmo aparentemente livres como os outros, andarão por toda parte acorrentados, atados aos pequenos amores da grande armadilha terrestre”. Entre esses felizardos está “quem segura sem temor uma lagartixa e lhe faz com os dedos uma carícia”. A repulsa da cena é imediata. A seguir, porém – contaminados pela excessiva doçura do cronista –, tendemos a admitir que, por que não?, são tenros e potencialmente macios esses bichinhos de Deus; não de todo deselegantes e (coitados) absurdamente inofensivos. Mais: silenciosos e inodoros. Melhor do que se possa dizer a favor de quase toda a fauna planetária.

Não é que eu vá nunca atingir uma evolução de tamanho grau que chegue a acarinhar uma lagartixa. Lamento e reconheço. Já é coisa à beça, entretanto, olhar para a pobre com simpática tolerância, sem nem a pulsão de suicídio nem de assassinato. Olhá-la como se olham as (in)diferentes possibilidades, as variadas e específicas existências, as belezas acomodadas em formatos múltiplos, as jovens delicadezas encerradas em outros corpos. Olhá-la com aquilo que se guarda nos olhos quando não se soterra uma via, quando não se mata uma chance: a deferência ao alheio.

O respeito suavemente profundo a quem teima em continuar existindo sem a nossa autorização.

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