segunda-feira, 18 de junho de 2012

Perto do coração selvagem

Outra coisa que não parece ser entendida pelos outros é quando me chamam de intelectual e eu digo que não sou. De novo, não se trata de modéstia e sim de uma realidade que nem de longe me fere. Ser intelectual é usar sobretudo a inteligência, o que eu não faço: uso é a intuição, o instinto. Ser intelectual é também ter cultura, e eu sou tão má leitora que agora, já sem pudor, digo que não tenho mesmo cultura. Nem sequer li as obras importantes da humanidade.[...]

O que sou então? Sou uma pessoa que tem um coração que por vezes percebe, sou uma pessoa que pretendeu pôr em palavras um mundo ininteligível e um mundo impalpável. Sobretudo uma pessoa cujo coração bate de alegria levíssima quando consegue em uma frase dizer alguma coisa sobre a vida humana ou animal.”

São palavras de Clarice, pescadas na meiuca de textos que publicou no Jornal do Brasil entre 1967 e 1973. São palavras de Clarice – e eu não diria outras. A vida escolar e acadêmica inteira fui considerada nerd ou CDF, ou intelectual, como vem a ser o correspondente adultizado. Só quem me conhecia residencialmente (Pais, Mana, Vó) tinha certeza do descabimento do título; logo eu, que postergava estudos o quanto podia, empurrava chatices pra quase véspera do prazo inevitável (senão para a véspera mesma), passava por físicas e matemáticas lacrimejando sangue de ódio, ódio, ó-dio! Logo eu. Logo eu que enfiava romancecos de puro lazer dentro de livros didáticos, quando não rabiscava uma dúzia ruim de versos próprios, quando não cismava simplesmente em nada e coisa alguma: futuros, vontades, amores. Logo EU! Eu – só pelo fato vulgar e numérico de tirar boas notas, o que indicava meríssima responsabilidade incutida pela família e não menor sensatez de dar a César o que era de César. Lá ia então me arriscar a demorar-me em provas finais e recuperações, em vez de mergulhar com delícia logo no primeiro dos primeiros segundos de férias??

Fui boa aluna, ou cumpri o objetivo; é tudo. Mania que o pessoal tem de confundir ação e vontade, dever e querer, prazer e escolha! “Que bonitinha, gosta tanto de estudar...”. Eu odiava. O-di-a-va. Abominava parar para aprender de encomenda, sob agenda e compromisso vindo de fora. Assim tinha de ser, é certo (sob pena de eu continuar até hoje uma analfabeta em mundo, se só estudasse por boniteza), mas que ninguém pretendesse me forçar o espírito a gostar do ingostável. Era aplicada sob consciente sacrifício. E portanto lhe asseguro, leitor crente de rótulos e descrente de negativas, que nunca pude nem poderei ser qualquer coisa que se pareça com o intelectual-modelo. O que aprendo por gosto, aprendo sem critério nem rotina, nem paciência com cerradas teorias nem quase disciplina nenhuma. Não me envaideço do caos, ao contrário: constato-o com bochechas envergonhadas. Bem queria ser constante, ordenada no conhecimento, leitora de ideias por amor às próprias; coube-me, porém, só conseguir destrinchar as ideias se vêm também embaladas com beleza e doçura, sem traço de academês esturricado. Ou me parece que estou diante de texto em russo. 

Mesmo em literatura, única leitura a agradar-me no geral, leio exclusivamente o que agrada no particular. Busco o soante, o vivo, o adjetivador, o úmido, o que tem anquinhas e anáguas e trata por “tu”, e tem tílburi aguardando na porta. Leio sem prisões nem mais obrigações de intelecto, que está presente no livro que tomo mas não me força a tomá-lo. Leio com selvageria, com paixão que não segue lista dos dez-mais ou dos mil-antes-de-morrer; leio já com interesse de quem fica sabendo sem querer, não planeja concursos, não se prepara para entrevistas, não decora Pequenos príncipes para campeonatos, não amealha respostas para as que soam irrelevantes perguntas. Finou-se a culpa estudantil (oh, a alegria do tempo que passa!) de desviar-me excessivamente do eixo de necessidades.

Leio por satisfazer-me. Não para dar satisfações.

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