quarta-feira, 20 de junho de 2012

Sustentável leveza do ser

Só este ano, em Sampa, já foram quase duas dezenas registradas em bairros nobres. Dezenove arrastões acontecidos em bares e restaurantes da área bacana. É muito, é demais, é doentio – mas, por esses deliciosos paradoxos que salgam de interesse a vida, a reação do povo não veio com pesadume, veio com leveza. Em vez de deixarem de curtir a noite, em vez de se enfurnarem no claustro preventivo, os paulistanos suavemente se adaptaram. O que largaram para trás foi sua tonelada extra; o que abandonaram em casa foi seu supérfluo parasita. Como a nave que, nos filmes, a qualquer sinal de perrengue ejeta a parte problemática e segue viagem felizinha, eis que os manos expulsaram conteúdos levados por excesso ou vaidade, e assumiram como bagagem o ‘kit arrastão’. Enfiam no bolso dinheiro, identidade, cartão do banco e vão à luta, pelados de carteira, de bolsa e (pasmo) do onipresente celular, que enfim começa a ser entendido como não-membro ou não-alma do querido amo.

Se é mau motivo, é boa consequência. Longe de mim defender o sofrimento por razão fria de evolução; mas também não se aproveita nada em desperdiçar fatalidades sem um caldo extraído, e se trata, no caso, de dom que abertamente invejo. Estou ainda para saber como é que se faz o desapego; não de celulares – que me seguem como utilitários atados à função primordial, de comunicação urgente –, e sim das mais várias necessidadezinhas trazidas pelo acaso e supridas pelos recônditos da bolsa. Ignoro como seja entregar-se ao fetiche de passear sem-lenço-com-documento, a começar pela orfandade do lenço mesmo, coisa essencial em mão de alérgico. Não uso nem porto maquiagem; o que dizer, porém, de sair à rua sem perfumitos e toalhitas úmidas, que nos restauram a dignidade após longo período desacopladas da nave-mãe? Que dizer dos mil e noventa comprimidos para dores cruelmente súbitas? Que dizer da água em garrafinha e do borrifador em frasquinho que tornam possível a garganta? Que dizer do espelho que checa os dentes, da escova e pasta que os corrigem? Dizer, só, que continuo amofinada escrava das pequenas crucialidades, embora persista também na fantasia íntima, rejeitada e inconfessa de ser curada por força maior. (Suavíssima força maior, ajustada para damas que carregam espelho.)

Eu quisera, sim, ser tomada por uns desses arrastões metafóricos e benignos que nos impõem leveza sem afanar um centavo. Umas dessas nuvens de iluminação que crescem tão necessárias, tão extremas pra cima da gente a ponto de nos forçar com urgência e alívio, de nos libertar com delicada violência. Estamos prontos, estamos ali na beirinha de prescindir de tudo, de largar tudo, de renunciar a tudo – tudo que nos mete dor na vida e na coluna; aguardamos só o pretexto, só o aval do mundo, a cortina de fumaça para o abandono radical do que nos pesa. Não queremos a doença, mas queremos que ela nos imponha o repouso e a reforma de costumes. Não queremos o desemprego, mas queremos que ele nos obrigue ao stop na correria, no metrô com rush, na falta de tempo com a família. Não queremos a maçada: queremos o álibi. A desculpa perfeita para sairmos flutuando, pimpões e inocentes da escolha.

Que, nos braços de outros nós, descansemos em paz. A terra nos faça leves.

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