segunda-feira, 16 de julho de 2012

A grande família

Sou – sempre fui –, além de cinéfila e leitora convicta, noveleira. Em suma, a dependente clássica e crônica de ficção, o que inclusive me decidiu o futuro profissional: não poderia cursar nada na faculdade que não permitisse ingestão diária de histórias. Foi útil (creio). A gente não inventa histórias senão para espelhar-se individual ou grupalmente, e nisso acabei esbarrando com o quíntuplo de transeuntes, imergindo em seis ou sete universos extras de confidências, transbordando em vinte mil vezes a cota de amigos e amores, a se comparar com quantos me tocariam a vida se tivesse sempre permanecido, muito quieta e isolada, em minha dimensão de nascença. Li, assisti, acompanhei: multipliquei-me. Se poderia, numa condição limitada, ter-me importado com duzentas criaturas ao longo dos anos, nessas existências de empréstimo devo ter excedido o milhão. Facinho. Sendo ou não gente “de verdade”, pouco muda; nós, vampiros de vidas possíveis, é que mais de verdade ficamos sendo pessoas – por conter mais pessoas. Como há quem enfie na orelha aquele aumentador de buraco, dependentes de ficção enfiam-se identidades fictícias, parentescos imaginários. Histórias são alargadores de coração.

Mas é bênção que não deixa de virar maçada. Demora nada e os personagens passam a dar pesadelo; de dia, de noite, é uma suspiração doida pelo destino de Catarina Luísa nas mãos de Veruska Isabela, ou de Gustavo Augusto pela espada de Guilherme Astolfo. Alargando-se o peito para receber mais estes conhecidos e parentes, redobram também as aflições terceirizadas – isto é que é. Não bastantes os aborrecimentos nossos e próprios, e aqueles de nossa turma de carne e osso, herda-se a amofinação de uma criança perdida às seis, a consumição de uma torcida pelo sucesso às sete, a escangalhação de um amor dorido de infância às nove; e tome telona à tarde, carregada de silêncios e explosões e fugas, e tome telinha corujona de madrugada, crivada de sustos e dramas de quatro gerações. Fora o romance aberto no colo, os protagonistas docemente arrastados para as cobertas, nossos, tão nossos – nós embolados neles de sofrer e alegria, um no outro, por breve eternidade. Nada diferimos, em desespero partilhado, das catarses de folhetim lidas publicamente no século XIX, como narrava Alencar no pequenino Como e por que sou romancista: chororô coletivo pela morte de um personagem muito e muito querido. São lutos menos sólidos, menos perenes, da mesma sorte infinitos e influentes na luz do dia enquanto duram.

Parentes por parte de câmera, de página, são igualmente sangue e problema urgente. Tomam-nos tempo, engolem-nos vida. Em compensação cedem matéria de sonho; o feliz assombro de nos reconhecermos em histórias improcuráveis por vias tradicionais; a motivação para um fluir recreativo do pensamento, quando já nos cansa o palpável. É isso a história minúscula: mundo de nos perder, mundo de nos achar. Viagem pra fora da gente em que cada qual pode acabar topando com um viável, um impensado amor que anda aí a esmo.

Até consigo mesmo.

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