segunda-feira, 9 de julho de 2012

Inimigo íntimo

Minha colega de trabalho contou de uma ocasião em que deixou não sei que alimentícios na geladeira da escola, identificados como seus, e um gaiato afanou-os. As circunstâncias apontavam que não era aluno, só podia ser funcionário. Professor, inspetor, esses alguéns. Minha colega ficou danada, e narrando jurou: nem era de ressarcimento que fazia questão; queria era ter certeza de quem fora o gatuno, porque temia simplesmente o susto de identificá-lo entre os companheiros de alta confiabilidade. Afinal descobriu (de fato se tratava de um dos professores, um que a profissão meio endoidecera), e, ao descobrir, não tirou satisfações nem nada. “Respirei de alívio”, afirmou. Observei que ela só desejava a segurança de saber onde estava pisando. Assentiu: “Nada mais angustiante do que o inimigo desconhecido”.

Inimigo é palavra forte para ladrãozinho de sucos e requeijões, mas fica por força de expressão. Estava certa, estava muito certa minha parceira de equipe. Não à toa bombam sucessos na telona em que o antagonista nunca é visto senão por metonímia, senão por barbatana cá, olho raivoso acolá, folha ou água balançando ali. Bombam os terrores que ameaçam tubarãomente, rondando, flertando, se achegando sem nos dar a vantagem das minúcias. É disparado o pior horror – o de barata voadora no escuro, o do pânico indirecionado, refém inteiro das circunstâncias, abandonado de estar sujeito a si mesmo. Não é a dor (ou, creiam-me, a barata) que tememos unicamente; tememos o súbito, tememos o despreparo, tememos ser traídos pela emoção imprevista no meio de uma serenidade agendada, tememos que nosso coração não suporte a novidade para a qual não fez enxoval ou workshop. O que nos apavora não é o desengano. É o desengano acachapante, que nos tocaia à covardia justamente na esquina entre crédito e conforto.

Ninguém quer achar um larápio no brother de profissão e sala, mas antes a consciência a respeito de um, como exceção, que a suspeita de todos como regra. Ninguém pretende atinar que o filho seja verdadeiramente culpado da tramoia, mas antes desiludir-se e catar alternativas educacionais do que apegar-se ao engano fofinho e regar de mimos um mau-caratismo. Ninguém exulta de ver suas tragédias matrimoniais no Com quem $%#& me casei?, mas antes expor TVmente um alerta de decepções que engrossar estatísticas de gente morta por cianureto. Antes a frustração pontual que o coração na defensiva imaginária; antes a sujeira trazida aos holofotes que a cegueira alegrinha de vítimas futuras; antes a pancada de realidade crua e seca que receios etéreos cancerizando o mundo.

Se no meio do caminho tem um iceberg: melhor saber.

Um comentário:

Sergio Trentini disse...

Fernanda, tens um talento enorme pra escrita. Parabéns, entre em contato. Acho que essa espécie está em extinção.