quinta-feira, 5 de julho de 2012

Música de higiene

Não me refiro, não, à cantoria a que se pode tradicionalmente proceder no chuveiro, ou durante o ato de lavar prato e roupa, aproveitando a acústica natural do ambiente onde água escorre. Longe disso. Falo da música que higieniza por dentro – e também não tem a ver com questões meditativo-religiosas, sons de dizer xô ao estresse, CDs lounge-acalmantes, Enya ou seus pares. Tampouco com as canções que a gente brada ou dança enlouquecido, gritando e rebolando o desabafo terapêutico. Still longe disso. A coisa, aqui, são as músicas não obsessoras, as que se combinam quimicamente com a fórmula da cabeça de jeito que permitam um buraquinho por onde se pense. As que nos frequentam deixando-nos ainda úteis à reflexão, capazes de nos ouvir sem barulheira mental. As que se adesivam a nós não necessariamente como lazer – embora a música de higiene precise ser minimamente querida –, mas como maneira única de asfaltar o pensamento, alisá-lo de todas as melodias desesperadoras e entregar-nos de volta a nós mesmos, tábula-rasados quanto possível. Dotados de todo o possível silêncio.

Digo isso porque – não sei vocês – só consigo trabalhar em silêncio, condição que não atinjo simplesmente quando o vizinho desiste de provar seus dotes vocais. Ou quando os alunos partem para o recesso do lar ao fim do turno. Ou quando as comadres param de matraquear fatos bafônicos para todo o metrô. Além de contar com a colaboração do vizinho, do aluno, da comadre, da novela, do telefone, da festinha na creche, do carro da pamonha, só enfim atinjo silêncio quando o radinho interno consente em emudecer os sucessos do momento. Não precisam ser do momento, não precisa ser sucesso: quando o radinho interno consente em sintonizar na música que domino, na música que não me escapa, que não subjuga, que não estupra a atenção. Vão exemplos. Anda por aí um esparrame de trilha sonora recheada de visgo, verdadeiro complô de gomas melódicas; tchus, tchás, tchês, oi oi ois, ai ai ais, adeles, rita lees, ex-my-loves, empreguete-pego-às-sete, nasci-assim-cresci-assim, the horror. Porque detesto as cançonetas? quem me dera: porque gosto de todas, e a consequência natural é que se revezem singelamente na cuca, tomando o dia completo e impossibilitando qualquer tentativa de concentração. Infelizmente nenhuma delas me calhou de ser a necessária música de higiene, a que você deixa tocando por dentro no repeat, sem prejuízo das metas de produtividade. Só com uma funcionou a loteria (em geral só funciona com uma por vez): “Depois”, de Marisa Monte. Encontrei-a, ela me encontrou. A única que consente ser cantarolada inteira em off, again and again, sem atropelar de vontade própria o raciocínio em franco nascimento.

Posso, como disse, ser assombrada por hits de outra época (e o canal Viva está aí para que eu tenha chance de a-gra-de-cer), mas a música de higiene não. Esta tem obrigatoriamente de ser uma síntese de seus próprios tempos modernos, sob pena de eu embarcar em viagem cronológica – novo, pior desequilíbrio – enquanto busco me equilibrar. O que significa: nada de “O cravo brigou com a rosa” ou de repertório do Trem da Alegria. Mudou a novela (se à novela pertence), mudou aos poucos a música de higiene, para inaugurar um mais atual período. Lamentei que, por exemplo, precisasse despedir-me do suave “tempo, tempo, tempo, tempo” de A vida da gente, mas filas andam; surgiu o tema triste e aconchegante de Avenida Brasil, a vida da gente foi mudando de gostos e hábitos, reinventei-me com a mais recente melodia de base. Curioso notar que a mesma voz de Marisa, bombando simultaneamente no hit principal de Amor, eterno amor, virou neste caso razão de tormento. Gênios compatíveis em termos de preferência pessoal; incompatibilíssimos com relação ao ponto de serenidade. Como dois gêmeos entre os quais se ama um, ao outro não se ama. Lógica inteira própria. Lógica inteira nossa, insondável a nossas vãs filosofias.

Lógica de música de higiene é a dos apaixonamentos maduros: parece que se volta para casa.

Um comentário:

OGROLÂNDIA disse...

Eu que escuto metal pesado já ouvi falar que minha música transforma água limpa em água podre. eca!
nada higiênico.
vou ali tomar ganho.