terça-feira, 17 de julho de 2012

O não-querer

Em Gabriela, Nacib acaba de tomar um grandessíssimo não da morena de cravo e canela, ao pedi-la em casamento. Não compreende. Ninguém compreende. Então não é o sonho feminino mor dos anos 20 – casar por estabilidade, sustento, segurança, bons olhares e boas ocasiões sociais? “Estou bem assim”, sorri Gabriela com a maior canelice do universo, intuindo muito provavelmente o que o casamento demandava na contrapartida da época: a obediência reclusa, o assassinato longo e lento de alegrias muito explícitas e quereres muito espontâneos, o enquadramento pianinho às convenções muito sisudas e muito inimigas da pipa solta na rua, do pé solto de sapato, dos cabelos soltos, dos seios soltos, das ideias soltas. Gabriela não quer a gaiola almofadada que todas querem: espanto. Gabriela não quer vestir seda, andar no salto, receber brilhante, prender homem, frequentar salão: escândalo. Não choca por ser “mulher perdida” – que também estas, as do Bataclã, se encaixam direitinhas nas sombras e becos sociais, sem ousar ir além do “seu lugar”; Bié choca por simplesmente não se alinhar a fileira alguma, não ser facilmente enfiada na lógica e nos maniqueísmos do tempo, não se prestar a nenhuns objetivos consagrados, não se deixar capturável para conforto das mentezinhas de Ilhéus. É imprevisível, incompreensível, inexpugnável; perigo. Audácia.

O não-querer desequilibra porque nos força a admitir a existência de alheias realidades. Desnecessário ir a grande escala. Sou exemplo eu mesma, por gabrielamente me recusar às pequenices: não furei nem hei de furar orelha, por não ter a mais vaga precisão de aumentar em dois buracos os sete que na cabeça já vêm de nascença; não uso maquiagem, por rematada preguiça e nojo convicto da ocorrência de manchas, especialmente de (argh!) batom; não uso esmalte, por estar indisposta a conviver com o mínimo descascado; não caminho nem  pretendo jamais caminhar no salto, por não enxergar a menor justificativa para moer dedinhos a fim de disfarçar uma pouca altura que, em verdade, me agrada. Gosto-me pequena, sem pós nem tintas me escravizando a imagem, sem adornos me violentando o corpo, alforriada de recursos que nunca foram comigo, nunca me disseram respeito. E nem assim me vejo menos feminina; sou, pelo contrário, bastantemente fêmea ante a facilidade de melhor sorrir longe de uma dúzia de instrumentos de tortura – chapinha, secador, escova, curvex, meia-calça. Livre e naturalmente enfeitada, colar no pescoço, pezitos no chão, tecido molinho, mal tenho tempo de me ser; calcule-se o esparrame de minuto perdido fingindo somar, a isso, o que as indústrias bem preferiam que eu fosse.      

Olha só que bacana: a gente pode não querer e não morre (num mundo civilizado, não morre) por causa disso. Pode não querer seguir passeata sem deixar de politizar em forma de crônica, editorial, Facebook. Pode não querer ser de direita ou de esquerda por considerar o preto-branquismo estúpido, e a despeito disso ser firme e posicionado. Pode não querer o título babaquizante de “nerd” sem abrir mão de curtir leituras e camisetas temáticas. Pode não querer sexo com o sexo oposto sem com isso ser gay, pode não querer sexo com o mesmo sexo sem com isso ser militantemente hétero. Pode não querer sexo at all. Pode não querer uma mansão. Pode não gostar de Paris. Pode abominar chocolate. Pode trocar de time. Pode preferir cor quente e sair de azul dos pés à cabeça. Pode defender convicção sem desprezar quem defende a contrária. Aliás: deve.

A gente, como quem cresce em casa um filhote, pode até achar nosso querer mais lindo e mais certo. Não pode é botá-lo para morder o não-querer dos outros.

Nenhum comentário: