segunda-feira, 2 de julho de 2012

Os precisados

Não é estrutura decente em português, sei bem. Não se trata de uma passiva possível. Mas quando há quem precise de nós não somos indubitavelmente necessários, já que podem querer-nos pelo ato de querer, sem o peso da utilidade. Somos precisados, acabou-se – “precisar” tem natural diferença de “necessitar”, que afinal este verbo último vem bem da ordem da urgência, da carência pela qual se morre, pela qual se esgota e se esvai. Precisar, podemos precisar do que nem necessitamos; precisar por criação de afeto, precisar por invenção emocional, por hábito ou até comodidade. Precisar pelo motivo simples de que a vida pode seguir inabalável e orgânica sem o ser precisado – mas abdica de sorrir.

Entrei nessas considerações por culpa dum poeminha de Bertolt Brecht, recém e mimosamente descoberto. Se não me engano, “Para ler de manhã e à noite”: “Aquele que amo/ Disse-me/ Que precisa de mim.// Por isso/ Cuido de mim/ Olho meu caminho/ E receio ser morta/ Por uma só gota de chuva”. Há indiferença possível? se é o retrato mesmo da doçura amorosa, do desvelo último, máximo, que é o tratar de si não (sobretudo) por si próprio, mas pelo aconchego sentimental do outro, pelo sossego de espírito dos que em perfeitas condições nos terão? Porque existe aquele a quem faria falta meu perfume ou livro na cabeceira, a quem atormentaria a ausência de minhas bagunças e meus afagos, de minhas lembranças e meus cacoetes, de minhas escolhas de fruta e minhas compras de padaria – porque aquele existe, cuido de existir tão bem quanto permitem as circunstâncias. Cuido de insistir na vida, de teimar nos bons pensamentos, de consumir as boas verduras, de visitar médicos indesejáveis e espiar nas duas direções. Persisto em gostar de mim, minimamente; o suficiente para atingir a noite com alegria digna, com o relativo equilíbrio das criaturas dotadas da vocação de existir. A gente diz que é porque ainda tem muita coisa para fazer na vida: verdade. A superior das coisas, porém, permanece sendo garantir o contentamento alheio; se não é o de amados, amigos, filhos, pais já tidos e beneficiados, é ao menos dos ainda descobrindos, ainda encontrandos. Dos que acharemos no meio do caminho prontinhos para sentir um vácuo do nosso tamanho.

Não tem aquela música “saber amar/ é saber deixar alguém te amar”? Pois. Os que não se querem, os que não se consideram adequados para viver, não é que ignorem ou desprezem por mal o persistente afeto alheio; não abraçam simplesmente sua condição de precisados, de desejados, de inclusive necessários, de não raro essenciais. Não é que não sejam capazes de amar, os autodestrutivos; falta-lhes, porém, alcançar inteiro o sentido do que sabem racionalmente, mas só enxergam de longe, como festa emocional cujo ingresso perderam. Falta-lhes convencer-se de dentro, por dentro, falta-lhes a persuasão íntima e intransmissível da ferida que largariam aberta, caso desistissem de contribuir para sua permanência. Falta-lhes a absorção sincera do fato de que facilitar a própria ausência é, direcionado aos demais, um ato de castração.

Amar também é existir por gentileza.

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