quarta-feira, 18 de julho de 2012

Save Ferris

Revi Curtindo a vida adoidado, sua rebeldia afetuosa. Hoje não seria feito com tanta candura – ou possivelmente carregariam nas cores pastelonas, para atenuar o desconforto com o fato de ações condenáveis se darem integralmente bem. Seja como seja, Curtindo é pérola de estilo, não se concebeu como manual de conduta; foi pensado para ser digno de admiração e delícia na forma, não de imitação no conteúdo. É fetiche; é projeção; é fantasia que, mesmo sob olhar de professora, conserva seu apelo de elogio à liberdade.

Não é de matar aula e gazetear dia inteiro, cidade inteira, a liberdade em questão. Carrega outra (mais profunda) o inoxidável Ferris Bueller, pelo menos duas vezes exaltada verbalmente durante o filme: uma com carinhoso espanto, pelo amigo Cameron, e outra com declarada inveja, pela irmã Jeanie. Ferris tem a liberdade de fazer dar certo. Ferris “sequestra” a namorada na escola com autorização inconsciente do diretor, Ferris arranja mesa em restaurante caro dando carteirada de “rei da salsicha”, Ferris invade o carro alegórico da parada alemã e performatiza duas canções sob as vistas e câmeras de toda a city; enfim Ferris retorna ao próprio quarto no último segundo necessário para fazer teatro de doentim inocente, e para ganhar de pápis e mâmis sopinha e mimo orgulhoso. Métodos discutíveis, id hipertrofiado, malandragens suspeitas – muito parecidas, inclusive, com o nosso tão nefasto “jeitinho”. Tudo isso, sim; e o charme viscoso do jovem Bueller não santifica o conjunto irresponsável da obra. Mas o que reluz em Ferris é a incapacidade de não se crer. Ferris se acredita, e – especialmente – consegue acreditar-se sem lançar mão de força ou arrogância, armas de fracos. Acredita-se transpirando doçura, acredita-se amando a si mesmo com naturalidade e alegria. Acredita-se (eis o fundamental) como se fosse bom e justo ter o direito à sorte e ao reconhecimento; como se o mundo fosse tão lindamente propriedade sua quanto de qualquer outro.

Se há leitores estranhantes do “como se”, não estranhem. Que a gente passa a vida vivendo assim: como se merecesse. “Então não merecemos estar felizes?”, chiará o primeiro militante amofinado. Respondo que sim, sem dúvida, a meu ver é coisa decidida; mas quantos de nós, convictos ou não de cabeça a respeito dessa vocação humana, exibem aí um coração convicto? Ou nos entocamos feito vermes, com autoestima de menos para qualquer ação que vá além de respirar; ou nos autorrepetimos palavras de ordem em mantra, lutando por nos desvencilhar da cuuuuuuulpa que vem com a felicidade no amor, na carreira, na saúde; ou definitivamente berramos a lista de nossos direitos em brinde histérico, já na defensiva quanto aos possíveis adversários e, por isso mesmo, soterrados de cuuuuuuuuuuuulpa. Se há algo extraordinário em Ferris é a ausência da culpa de conseguir. Não confundir com falta de ética e impermeabilidade moral, feiuras próprias a egoístas, meliantes, psicopatas. Falo da alegria limpa e genuína de se descobrir, sem prejuízo alheio, em lugar como o diria Guimarães Rosa: tão de repente bonito.

Save Ferris – o Ferris que em você mora cantante e resoluto, fazendo coleções de “por que nãos?” já vencidos e empalhados. Day off  total no preconceito contra si mesmo.  

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