sábado, 27 de outubro de 2012

Do arco-da-velha

Hoje faz 230 anos que o mundo recebeu um daqueles marcos históricos ambulantes, daquelas criaturas que nascem para que se veja até que ponto! a coisa pode chegar: Niccolò Paganini – muito talvezmente o maior violinista de todos os séculos. Como não podia deixar de ser, minha relação com Paganini não principiou musical, mas literária. Minha mãe guardava uma série de livritos veeeelhos e adoráveis, de amarelo sedutor, de cheiro macio e de cio (livro, minha gente, é que nem amores: tem aquela irracionalidade essencial do cheiro). Era uma coleção juvenil que narrava histórias dos grandes autores eruditos, e que cansei de virar e revirar encantada, principalmente nos momentos de fingido estudo. Então: lá estava Paganini no bonde. Devo montão ao exemplarzito meu encanto definitivo pelo violino – encanto platônico, não se alarmem –, em especial na lembrança da frase que, um dia, também foi dita pelo mestre ao pequeno Nicolau: “O violino é o instrumento que mais toca o coração dos homens”.

Influência do ditado ou não, fato é que sou incapaz de ouvir sem chorar o raio do violino. O bichinho me amolece. Nem é o mais agradável do time das cordas: celo e contrabaixo, irmãos maiores, ganham longe em termos de aveludado da voz, e passam maior confiança de varões. Fora a triste verdade de que violino tocado sem perícia se assemelha monstruosamente a um brontossauro tuberculoso. E mesmo nesses entretantos, se calha de o baixinho encontrar mãos perfeitas, que conheçam seus pontos gês, não tem pra ninguém. O violino se sangra, se rasga, se chora inteiro tão agudamente que nos chega como lamento nosso, lamento de mulher sobretudo; quase uma covardia. Violino canta na frequência exata das sereias e aí – na fresta aberta do miocárdio – se instala, traiçoeiro, perigoso, até os fortes derrubando em sua capoeira abrupta. Violino toca minuciosamente o coração dos homens porque o imita. Nos imita.

Recordo um trabalho de faculdade no qual uma colega executou um trecho ao violino para corroborar a apresentação de seu grupo. Chorei. Recordo um trio de jovens (tão jovens) violinistas de rua, ouvido ao acaso num lugar por onde não passaria, em dia no qual tivera um dos momentos escolares de deixar a alma enforcada. Os violinos me entoaram, cúmplices, a bem-amada “Ode à alegria”. Chorei as vísceras. E tenho minhas dúvidas se, no pega-pra-capar do Titanic, eu não me demoraria mais que o sobrevivível, mais que o aceitável, chorando os sete mares diante da cena mais embargante antes da guerra: a dos famosos músicos que gemiam seus violinos com teimosia, preferindo emoldurar tantas vidas perdidas a salvar as próprias. Porque esses sóis, esses fogos, esses gremlins, esses animaizinhos de cordas têm isso. Agarram no ambiente. Ofuscam-no. Transformam-no. Pintam uma beleza exagerada no instante, tornam o prosaico e o triste (às vezes) indevidamente tolerável, iludem as forças, arrancam para o bem e para o mal o que temos de feras. Anestesiam na marra os doeres que volta e meia não queremos deter.

Se a vida lhe exigir duelo e conceder a escolha de armas, saque o violino. Não morre nunca de todo, não, quem escuda as balas com a melhor versão de si mesmo.

Nenhum comentário: