quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Morte súbita

Não é que eu não tenha gostado de Salve Jorge. É bacana, apesar da densidade demográfica (personagem saindo pelos ouvidos); começou ousada e mandou ver na superprodução. Quase um épico. Tem uma Turquia banhada em azul, um Alemão imenso de fardas e cavalarias, uma abertura tudo-ao-mesmo-tempo embalada a versos de Seu Jorge (amei 100%), um Rodrigo Lombardi sorrindo igualzinho ao Rodrigo Lombardi. Tem música nova do Roberto! Só não curti algo que meu Fábio bem observou e que, de fato, vem me incomodando já há algumas novelas da Glória: a paixão do casal principal, aparentemente nascida de uma flechinha de Eros, uma epifania, um particular big bang. No segundo capítulo, a garota era ainda prisioneira de Théo na delegacia; hoje, no terceiro, já andava com ele aos beijos pelo morro e – coleira definitiva – chegou a apresentá-lo pra mãe. Como? quando? onde brotou o amor fulminante? Entre um desacato à autoridade e uma ou duas trocas de acusações, aliás malcriadíssimas quando vindas da heroína Morena. É bonita a moça, verdade. Mas duvido houvesse chance, num mundo real, de alguém tão sentimentalmente instável como Théo ser capturado à primeira vista justamente pela vulgaridade e grosseria da tipa. Não é lá cartão de visitas de princesa encantada que se espere.

Igual abracadabra aconteceu em Caminho das Índias, entre Maya e Bahuan; em América, entre Sol e Tião; em O clone, entre Jade e Lucas. Um encontro fortuito, uma esbarrada, uma olhadela e pow! bate o sino. Não há possível empatia da audiência com amor tão no susto, tão espaventoso, sem a construção calma e tijolinha dos casais que se fixam. Talvez muito por isso, acabam se alterando os rumos dos protagonistas em favor de ternuras mais acreditadas pela plateia. As duplas originais não “pegam”. Estão aí, que não me deixam mentir, os neocasais Maya e Raj, Sol e Ed – erguidos na vivência delicada do matrimônio por conveniência, e dia a dia caídos no gosto do público. Só por teimosia da autora Jade e Said não foram pelo mesmo caminho, apesar da química potencial: acabou vencendo a chochice da “paixão” por Lucas, o protagonista com cara de empada que estava aquenzíssimo do talento de Murilo Benício. Torcimento de narizes quase unânime. Foi casal que começou por espanto e continuou por preguiça.       

Só que amor não começa por espanto. O que por espanto pode começar é a noção (boa, ruim, encantadora, confusa) da existência daquele ser; a constatação inicial de que há uma possibilidade circulando na pista. Amor, em si, não é constatação. É construção. Para que se fizesse nos moldes do “à primeira vista”, necessário seria haver um scanner em nós embutido, leitor imediato de desejos, valores e vida pregressa – porque amor, lenta consequência e não causa apressada, só no conhecimento se baseia. Inviável que fosse um princípio em vez de, senão um fim, um meio; inviável que no primeiro dos encontros, no primário dos olhares, viessem os dados que tudo alicerçam: se também respeita os animais, se também se renova em viagens, se acredita em família, se desacredita em mais direitos que deveres, se o cheiro encaixa, se o papo funciona. Visto que a pessoa, enorme tudão, não nos vem de chofre. Toma tempo de estudo e paciente delicadeza, demanda exemplos e episódios, horas de telefone ou tantos mil caracteres de e-mail, hipóteses e músicas, lanches e TPMs. Pessoas demoram a esbarrar na gente de alma inteira, se é que em vida dá tempo. Pessoas demoram.

Amor não acaba nunca de começar.

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