quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Caso a dor se vá

“Dores, cada um tem as suas. Mas o que nos faz cultivá-las por décadas? Creio que nos apegamos com desespero a elas por não ter o que colocar no lugar, caso a dor se vá.” São palavras de minha Martha favorita, no texto “Cresça e divirta-se”. E não é exatinhamente assim? Alma vazia não para em pé, e esta que recebemos de fábrica, para ter feijão suficiente de nos ir empurrando através dos dias, precisa necessariamente escolher gasolina que chame de sua. A maioria põe amores como peso de papel: preenche o tanque de apaixonamento irrestrito pelo filho, pelos pais, pelo noivo, por perfumadas ideologias, por sinceras religiões, por animais de estimação, pelos careceres da humanidade. Outros tantos sapecam trabalhos e hobbies no contrapeso, e exalam medicina, respiram música, suam magistério, têm hálito de jardinagem, arrepiam tesões de viagem, ardem febres de escrita. Tudo equilibradamente muito justo, muito bom; mas e quem – por biografia ou índole – não se ajeita com qualquer das delícias combustíveis do mundo? Esses são os feridófagos; é povo que não caça fora, vai-se engolindo por dentro e alimentando de mais ausência suas ausências, como os buracos negros. Em seu estado de vácuo absoluto, agarram-se ao nada como único possível tudo e devoram-se, devoram-se, canibalizando ressentimentos tanto quanto os náufragos que se hidratam da própria urina.     

Todo mundo conhece uns tais azedos – quando não luta para evitar ser um. São as velhas senhoras (às vezes de 16 ou 31 anos) que remoem por quarenta décadas a trairagem da prima ao papar-lhe o namorado, sem perceber que o namorado já estava moído de levar patada ciumenta e iria embora por cansaço, mais dia menos dia. São os vizinhos múmios (às vezes de 23 ou 42 anos) que furam a bola dos garotos ou boicotam a reunião de condomínio porque a alegria e a indiferença gerais lhe afrontam o silêncio amargurado dos problemas. São os espíritos ermitões que se demitiram da sociedade tão logo tiveram uma perda, uma grande perda para ser devidamente incompreendida, uma grande injustiça para ser convenientemente esquecida, uma grande ofensa para ser naturalmente ignorada. São os que já carregavam coração incapaz de sustentar-se independente, e que portanto, qual se cumprissem destino, aguardaram o advento da Dor como ração de sobrevida. Como mal necessário.

Não digo que os sofredores convictos quisessem ou precisassem perder um filho, desenvolver doença, levar traição, que não sou doida. Digo que almas propensas ao tristume tão mais afundam nos próprios abismos, tão mais dão vazão a seu vício de ser chumbo, quanto mais o mundo as piora com pretextos. Digo que a Dor combina perigosamente com aqueles que só sabem justificar-se pela dor, da maneira perigosa com que combinam bebida e alcoólatras. Digo que umas tais criaturas, fossem felizes por vocação, receberiam a tragédia mas não subsistiriam dela: acionariam os recursos milenares do humor, do perdão, da teimosia, da experiência convertida em ajuda, da paciência convertida em doçura, do fato tornado coragem. Se persistem retroalimentando seu desespero, é que mui anteriormente o tinham  parido – nunca se tinham dado à luz.

Só quem se desposa tem companhia caso a dor se vá. O outro dá de comer ao tumor que, arrebentando, o enviuvará de si mesmo.

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