terça-feira, 13 de novembro de 2012

Do lado de lá

Tá bom, não resisto. Mais umazinha do Scliar. Desta vez, a notícia escolhida pelo autor para inspirar a crônica narra a saia-justa sui generíssima da British Airways, que precisou divulgar uma nota de desculpas por ter instalado um cadáver na primeira classe. Não, não um caixão. Um cadáver a frio e no duro, sem pensamentos trocadilhais. Deu-se assim: uma passageira idosa levou a sério a metáfora da viagem e faleceu durante um voo Londres-Nova Déli. Só que a senhorinha ia de classe econômica – lotada, como não? –, e a equipe de bordo, numa delicada tentativa de minimizar a exposição e o transtorno, achou por bem passá-la daquela para uma (seção) melhor. O problema (além do detalhe da morte, é claro) foi que um frequentador da primeira classe dormiu com um lugar vago ao lado e acordou vizinho de um cadáver; aborreceu-se um tanto – e o fato de os parentes da senhora passarem a noite lamentando e velando o corpo, por algum motivo, não ajudou. Ignoro se rolou compensação outra, mas ao menos uma indenização verbal coube à empresa por ter tido a desfaçatez de lembrar que a indesejada das gentes mora ao lado.

Certo, não é a coisa mais bacana despertar de um sono acolchoado e perceber que o indivíduo mais próximo perdeu a faculdade de despertar. Admito que temos ligeiro preconceito em relação a seres irrespirantes; mas por que mesmo? Gente morta é silenciosa, megadiscreta, de permanência pacífica. Não conversa ou ri em altos brados quando quietude é tudo de que precisa o espaço sonoro alheio; não invade com o cotovelo, não catuca com as pernas, não afeta indiferença quando o filhote joga Fanta Laranja no seu colo, não insiste na conversa que violenta sua leitura, não tenta te convencer de que não há vida fora da Cientologia durante as dez horas de voo. A morte (naturalmente morrida), se não é bela, é no mínimo afável e polida depois de concluído o processo. Não merece a grosseria do horror gratuito que lhe temos, como se fosse aberração em vez do mais certo dos fenômenos. Receá-la enquanto não é fato, vá lá; receá-la mesmo após instalada é ter descompasso cronológico: assistir a filme de suspense e, na semana seguinte, gritar.

Na realidade não tememos o cadáver de outrem, por mais que ver The walking dead faça parte da rotina. Tememos o que o silêncio da criatura inerte não tem a nos dizer. Tememos o inabrir de olhos a nos lembrar que um dia o sono não vai ser curado pela manhã, que daqui a pouco fica o não dito pelo não dito. E pronto. Acabou. Just like that. Não tememos, pois, apesar de ser natural; tememos porque é natural, real, próximo, fácil e fluido, a ponto de o sujeito poder estar indo conhecer a Inglaterra ou a Índia e isso não o impedir de vupt, morrer. Temêramos menos se houvesse prazos, regras, controláveis burocracias: guardaríamos (como já tentamos) a impressão nem tão sobressaltada de que há tempo, tempo, tempo, tempo para nos deixar seguros. Mas essa igualdade! Essa promiscuidade! Esse absurdo invasivo de saber que o vizinho do 304 foi assaltado, que o boteco em frente foi baleado, que o colega de departamento foi relampagamente sequestrado! Não, essa coisa de morte não respeita a decência. Teima em fingir que não é uma daquelas síndromes escabrosas que só pegam no primo em terceiro grau do amigo da tia-avó da cunhada. Dos outros.

E no entanto, a despeito desse nojinho, cumprimentamos diariamente uma multidão de cadáveres ambulantes. O vizinho do 713 que entra no elevador às 8h da matina já com cara de soldado da SS, o dono da cobertura que crê piamente em sua superioridade sobre o porteiro, o rapaz da baia ao lado que se ufana de nunca ter lido um livro na vida, o ascensorista com olhar era-do-gelo que só acredita em ir empurrando com a barriga, a cliente que só economiza para dois objetivos: plásticas sucessivas e um túmulo grandioso, o filho adolescente da sócia que passa os dias batendo ao vivo e bullyiando pela internet, a mãe dos gêmeos para quem é a mesma coisa se os moleques jogam Fanta Laranja no seu colo, quebram a bandeja na cabeça um do outro ou se atiram na turbina do avião. Pessoas que desistiram, pessoas que nem tentaram, pessoas que foram convencidas a respeito de um “nada” coletivo, pessoas que nunca amaram, pessoas que nunca quiseram ser amadas, pessoas tão possuídas de raiva que são raivas com cara de pessoas. Horror, o verdadeiro horror: cada um de nós vê, sim, gente morta.

O tempo todo.

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