quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Doadores

Um conhecido resolveu gritar, no status do Face, que é doador de órgãos. Imagino que o ato tenha a ver com alguma situação de doença entre os próximos, mas eis o bonito da coisa: dizer o necessário, proclamar o necessário enquanto há tempo desprecisa de um porquê. Sou doador, ponto, a quem e quando interessar possa; é uma informação de amor inguardável para consumo interno, um essencial feito para ser gentilmente berrado à luz do dia, até com o objetivo de não sobrepesar de dúvida uma família já tonta de dor (aliás – e podem me atirar o Corcovado na cabeça –, eu ignoraria solenemente a vontade de um morto que tivesse o egoísmo último de não pretender salvar outras vidas. Me espanca aí, se seu estômago aguentaria assinar um N-Ã-O na cara da senhorinha que está vendo, mês a mês, o coração do filho único necrosar. Tá indignadinho? morre pra longe de mim. Questão de prioridades. Tenho a esquisita tendência de favorecer quem teima em continuar respirando). Em tempo: sou doadora, não haja questionamento possível a um blog todito por testemunha. Terei a honra mais inteira de dissolver-me em diferentes anfitriões, em partir permanecendo, tão amante da vida a ponto de virar-lhe semente. Na esperança, é claro, de não amofinar muito o hospedeiro com a memória emprestada de 1.568 tirinhas da Mafalda, aulas de orações adverbiais e hits do Roupa Nova. Doar é também contaminar um pouco.

Antes de chegarmos aos finalmentes do desmanche físico, porém, há que nos distribuirmos em fragmentos de nós, em tantas transfusões de nós quantas forem fundamentais para a manutenção de existências vizinhas. Na impossibilidade de plantar uma aurícula ou ventrículo de pensamento saudável no meio de um tórax muito, muito corroído de desistência, plantamos às vezes uma única palavra-lâmpada, um único germe de ideia, único grão de estrada nova. Na dificuldade de arrancar a córnea e metê-la dentro duma cegueira autodestrutiva, damos às vezes uns bofetões de luz – broncas tinhosas, perseguições implacáveis, teimosias de anjo da guarda profissa. Na proibição de cedermos um dos pulmões ao amigo sufocado de mundo, realizamos uma traqueotomia de abraço que abra fresta para a tristeza respirar. Não podemos emprestar pele, mas podemos tecer a cicatriz e cultivar tato; não podemos entregar tímpanos, mas podemos costurar entendimentos; não podemos oferecer braços, mas podemos nos enfiar no mutirão. Não podemos nos fatiar ainda, por mais que possuídos de ternura excessiva; e no entanto devemos – sem listas nem burôs nem bisturis nem nove-horas – devemos absolutamente tomar vidas a peito, na víscera que as enfraquece, na vitamina que lhes falte. Nascemos não simplesmente colegas, não contemporâneos apenas: somos ampolas, somos mútuos suprimentos. Estoques recíprocos. Daí o encanto das diferenças – que não interditam, antes aquecem a troca. Todo amor encaixa. Todo amor é compatível.

Ser imprestável para doação em vida é o melhor indício de morte cerebral.

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