terça-feira, 6 de novembro de 2012

Foto de marinheiro

Engraçadas as nossas lentidões. No último domingo, o tema de capa da Revista global eram fotos: a profusão desesperadora de fotos atuais, a democracia narrativa da imagem, o surto de fotografismo que leva o cidadão comum a não mais almoçar um frango com quiabo sem tascar o penoso no Instagram. Rolou, claro, o debatezinho básico entre as delícias do registro pá-pum, acessível a todas as fomes, e a beleza antiga dos retratos-privilégio, tão mais amados quanto mais únicos, árduos, relíquios. De repente me vem a fala da historiadora Karen Worcman: “Toda essa tecnologia é, agora, uma ferramenta de democratização e de banalização da imagem. Cabe recuperar, no meio dessa confusão toda, esse papel do sagrado, da ‘foto de marinheiro’”. Embatuquei cretinamente. “Foto de marinheiro”. Há de ser expressão idiomática que desconheço, não, tio Google? Tio Google garantiu que não; nenhum dos links retornados sugeriu a explicação poética que eu já alinhavara – a de que uma fotografia tirada ou recebida por homem do mar seria eternamente adorada por quem fosse ou quem ficasse; seria monumento à saudade na meiuca das tormentas, consolo por entre as viagens, abraço e beijo possíveis no intervalo das missões. Seria o sol, o sal dos amantes, filhos e pais longínquos. Prossegui nessas doidas hipóteses até me dar conta de minha piração sintática. “Foto de marinheiro” não era o ato de capturar a estampa do marujo, nem de lhe pôr na carteira uma lembrança de namorada, e sim de vestir-se (ou ser pela mãe vestido) com roupinha náutica para a posteridade familiar – coisa daquelas eras em que todo o clã ia ao estúdio fotográfico proceder à cerimônia de um registro de luxo.

Ri da distração gramatical, mas permaneço adepta da primeira explicação. Fotos de marinheiro não são só raridades de infância, ou congelamentos de uma determinada fase, determinada festa, determinada fresta no tempo que não lembramos – ou lembramos sombreadamente, mal e mal. Fotos de marinheiro não precisam ser raras; devem sim, independentes de toda rapidez e acesso (qual marinheiro de hoje não receberia cópia instantânea da família pelo Face do celular?), ser caras e caríssimas. Devem ser clicadas com a solenidade carinhosa de um pai que gera memória salvadora para o meio do oceano. Devem ser, se bem que fáceis, escolhidas com a precisão do filme de doze poses; se bem que frequentes, celebradas com a ênfase do último abraço no porto; se bem que abundantes, cuidadas com exclusividade de relicário. Sem a promiscuidade dos fotoelogios a cada fio nosso de cabelo, sem a vulgaridade da exibição excessiva de nossos prosaísmos. Foto é poesismo. É o aprisionamento, em âmbar, do inseto que viraria fóssil. É a jaula visual que emoldura em beleza o que viraria minuto. Não foi feita para o banheiro do shopping, não foi feita para ostentação de bandido frangote com fuzil, não foi feita para o tolo e esquecível, o constrangedor e arrogante. Foto é a imagem convertida em reconhecimento, consagrada, sagrada. De algum jeito sagrada. Porque tinha o cheiro da viagem a Cabo Frio, porque armazenou a flor dada pelo paquera, porque nasceu do primeiro olhar ao Castelo da Cinderela, porque conservou a primeira palavra do inesperado caçula, porque guardou o capelo que você jogou na formatura e se perdeu no salão, porque pegou a expressão do marido quando você contou de um mais inesperado caçula, porque manteve arrumada a mesa daquele melhor aniversário, porque sacou da cartola o gosto da broa de milho que se comia o dia inteiro.

Fotografar (para o que foi feito) não há de outro tipo: está em hospedar amostras de vida dentro duma foto de marinheiro.

Nenhum comentário: