segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Na geladeira

Outra do livro de Moacyr Scliar. Na notícia-mote do texto em questão, contou-se que Amélia Pires, senhorinha de oitenta anos, interrompeu o sonho de conseguir vaga no curso de Administração da Universidade de São Paulo (para o qual já prestava vestibular havia uns bons anos) a fim de comprar... uma geladeira. O sobrinho lhe emprestara a grana de inscrição no vestiba, mas não teve jeito de fazer depósito na poupança imaterial; a carência de conservação brotou urgente, pragmática, e o dinheiro foi devidamente investido na primeira parcela de um refrigerador novinho. Pena. Pena que a realidade nem busque a gentileza de disfarçar o recado simbólico: no frigir dos oitenta anos, manter acaba invariavelmente levando a melhor sobre o jogar-se. Tolera-se o coração subnutrido por mais três ou quatro tempos, contanto que nossa despensa externa esteja de tanque cheião.

Veja-se que não está em mim criticar a vovó; ao contrário. Solidarizo-me inteira à necessidade de adiar um (já adiadíssimo) desejo em prol de uma imediatice que grita, e acho, inclusive, que a atitude foi tristemente responsável. A questão é que sou fã de uma calculada irresponsabilidade. Acredito no “jeitinho” do bem, capaz de escorregar por entre os vãos do problema investigando a beleza das alternativas, das terceiras vias, criativas sem prejuízo moral. Acredito nas fadas do meio-termo, nas boas bruxas da invenção, nos sacrifícios que só se reservam extremos para os casos extremos. É evidente que desconheço a situação financeira de Amélia Pires; suponho-a quase extrema, já que dependeu de ajuda do sobrinho para cobrir a despesa extra, pequena embora. Não tão extrema, porém, a ponto de inscrevê-la no time da fome: a senhorinha tem casa, sonho invencível de estudar na USP – o que implicita um certo acesso a livros e apostilas – e comida suficiente para ser ameaçada de morte pela geladeira imprestável. Provavelmente Amélia vive de aposentadoria ou pensão salário-mínima, bastante apenas para o trivial das contas, compras e remédios, sem possível extravagância. Muito bem. Assumindo seja assim, o que eu fazia? Tudo, creia-se; tudo antes que a faca no pescoço me dissesse “escolhe” entre a contingência e o projeto. Não me rendia sem amofinar o sobrinho por mais um dinheirito de empréstimo, sem chatear o banco por um help humildezinho, sem empenhar uma aliança ou anel de grau, sem aprender a fazer bijus com material reciclado para negociar na vizinhança, sem pedir uma força na venda do material reciclável da vizinhança, sem pedir uma ajudinha de custo ao pessoal da igreja, sem vender a linha fixa, sem vender o celular (nem vem: todo mundo tem celular), sem pesquisar brechó que se interessasse pelos guardados vintage. Ah, mas é uma senhora de oitenta anos. Sim: uma senhora de oitenta anos que queria (ou quer) passar meia década na melhor universidade do Brasil, cursando as pedreiras de Administração. Jura que ela já não saberia se as outras oito décadas fossem obstáculo à teimosia renhida de um caçador de sonhos?  

Não sei onde anda hoje a dona da geladeira, mas vai um recado. Desiste não, Amélia. Invente, tente; bola pra frente. O tempo, que nunca é muito – e tendemos a acreditar que seja menos muito para os vivos há muito tempo –, exige de nós comida bem conservada e imperecida para a conservação do corpo perecível, porém exige, sobretudo, memórias cheirosamente frescas e suculentas para o trecho que não perece. Vá fundo no que é guardado onde assistência técnica alguma põe defeito ou dá jeito. Nada de achar bonito não ter o que comer, mas nada também de largar-se esfaimada ante a conformidade irritante dos fatos.

Só produzindo outros fatos, Amélia, para a gente ser mulher de verdade.

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