sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Recém-nascendo

Criancinhas são boas, dizia Quintana, porque “hão de escutar com renovado encanto os versos mais sovados, os temas mais batidos... Parece que não é para outra coisa que surgem as gerações. [...] Graças a isto, nós, os colunistas, nunca nos veremos na contingência de parar de escrever, porque sempre haverá recém-nascidos. Recém-nascidos de todas as idades”.

É fato dos fatos. O mundo que a esta altura já nos anda manjadíssimo de truques – a nós, os adultamente impedidos de arregalar-nos diante da moça que levita no show, da coleção de borboletas que voa da manga do mágico, do pé de feijão que espichou dois centímetros desde ontem à noite, do herói ex machina que irrompeu na tela do cinema – é o exato mundo que ressurge ali na esquina puro e fresco, muito pronto a seduzir novas carnes. Sempre haverá presas de ingenuidade deliciosa: estagiários maravilhados com a primeira reunião de cafezinho, professoras sedentas na expectativa das primeiras turmas, risadas dispostas a entregar-se por velhas anedotas, amores aptos a confiar na perfeição de outros amores, bracinhos de filho estendidos inteiros a quem talvez os tenha, desta vez, aceitado. Sempre, para alívio das nações, existirá a viabilidade de contratos mais recentes. Sempre a vida há de pilhar um público-alvo.

E nós, os adultamente retirados da lista VIP de promoções? os tão calejados, tão experimentados, tão seriamente vividos que parecemos aposentados de mundo? os que, nos gabando do conhecimento estocado, suspiramos tédio? Pois nós – nós que suspiramos tédio e olhamos em volta como se fosse razão de medalha – bem corremos risco de os recém-nascentes nos devolverem ao precipício. Uma vez estacados em nossa desistência, em nosso cansaço, em nossa ruminância, viramos pedra do caminho, búfalo empacado no meio da possibilidade alheia. Viramos iceberg no meio de tanta navegação deslumbrada. Ou a gana das outras vontades nos atropela, ou o empedramento das nossas as contém. Anyway, desastre. Fazermos então como? recém-nascermos; muito, em tudo e sempre. Fluirmos. Seguirmos com a banda. Seguirmos com o bando. Fingirmos diariamente a verdade: que somos feitos da mais formidável inexperiência.

A despeito dos 25 anos de bom casamento e bom sexo, ainda engatinhamos naquele trecho onde mora a fantasia secretíssima do outro. Apesar das seis décadas de apreciação musical desenvolvida, ainda somos bebezolas em concerto para fagote, dança tribal do Congo ou baile funk. Muito embora residentes por 820 séculos na mesma cidade, ainda não acabamos de ser alfabetizados nos dotes de seus quarteirões: hoje uma nova feira de artesanato, amanhã um atalho que se abre indecentemente para o oceano, semana que vem um restaurante estreado como filial de Xangri-Lá. Não abrimos os olhos para todos os livros. Não fomos educados em todas as frases. Não sentamos no colo de todos os filmes. Não mamamos em todos os museus, castelos, teatros. Não atiramos esperanças a todos os nossos papais noéis. Não rezamos todos os nossos pedidos. Nem agradecimentos. Não lacrimejamos (infelizmente) todas as dores. Não nos encantamos bastante. Não soubemos bastante. Não fomos bastante. Parte nossa é inevitável feto. Parte nossa – ninguém melhor que Guimarães Rosa o diria – é eternamente a que por enquanto. 

Sejamos, com gula novata, o teimoso por enquanto. Que nada mais nos salva tanto do era uma vez.

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