quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Ter sido

Está começando aquela série da Globo, Como aproveitar o fim do mundo. Não vi, não pretendo ver (levei muito tempo para emancipar o sono de Gabriela), o que não me impede de achar a proposta engraçadíssima – oportunista no melhor dos sentidos. Todos sabem que é treta a tal profecia maia, ninguém se amofina de verdade com a promessa de não ver os fogos de Copa (nem se anima com a de economizar nos presentes de Natal), mas uma certeza se impõe eterninha: com ou sem superprodução apocalíptica, todo dia o mundo acaba para alguém. Just like that. Vivemos na iminência menos alarmista, não menos alarmante, de determinado item da nossa checklist de projetos amanhecer 30 minutos tarde demais.

E qual dos elementos must do eu menos quereria ver atropelado pela urgência do fim? Tão-somente: ter sido.

De (quase) qualquer contentamento secundário eu abriria mão sem sofreres incuráveis: aprender francês, passear de balão, fazer um cruzeiro, hospedar-me à Agatha Christie no Expresso do Oriente. Sobreviveria ao vácuo de algumas viagens sonhadas; prosseguiria com saúde sem nunca partilhar um chá de ABL; passaria ilesa pelo fato de jamais me inscrever em curso de culinária, bijuteria, bordado, dança de salão. Chato, mas faz parte. Ooops. Não deu. O que não pode não dar é correr uma existência inteira sem ter sido essencial para quem quer que seja. Sem ter sido a pedra de toque que se ajeita à maravilha com alguma fechadura secreta. Sem ter sido o único braço que adormece a criança, a única voz que rege o cachorro, a única professora que lhe meteu as regras de acentuação na cachola, a única escuta amiga no meio de qualquer maremoto. Sem ter sido isso mesmo: único na coletividade. Único de alguma forma. Único sob certo prisma. Único na irmandade dos que preenchem; dos que vêm, de nascença, com o condão de melhorar o alheio.

Precisa-se ter sido o alívio de um confidente, quando todos os demais eram cactos de incomprensão. Precisa-se ter sido um(a) primeiro(a) namorado(a) inesquecível, e continuar referência de ternura mágica depois de promovido(a) a cônjuge. Precisa-se ter sido a mãe que se deseja pôr, dourada, na biografia; o pai que se quer homenageado na formatura; o irmão que protegeu com afeto de pelúcia; a irmã que foi molde de música, beleza e mocidade. Precisa-se ter sido uma tia que dava os melhores presentes, um tio que trazia gargalhada e jogo de dominó, um criador de programa que alegrava as manhãs da clínica infantil, um colunista de jornal que dardejava direto no coração, um gerente de banco que recompunha orçamentos despedaçados, um fiscal sanitário que frustrava tantas septicemias, um compositor de temas que saravam lágrimas engolidas, um feirante que elogiava autoestimas falecidas. Precisa-se ter sido alguma vez, várias vezes, todas: um céu, um sol, uma festa, um refúgio, uma casa, um colo, um berço, uma balsa, uma valsa, uma escada, uma escola, um divã, um lenço, um troféu. Pelo menos uma lanterna. Com sorte, um empurrão.

(Quando acabar-se o mundo mundo vasto mundo, de pouco monta ter bolado a rima. Quero ter sido a solução.)

Nenhum comentário: