segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Cuidado: frágil

Assistir ao Oscar é irritar-se – muito menos com a infamice das piadinhas (que a gente nem entende em bom inglês, nem estapafurdizadas em “português” simultâneo) do que com a das injustiças. As injustiças épicas. Desta feita, a Academia caprichou em duas: a troca do perolíssimo Detona Ralph pelo inodoro e cabeludo Valente e a esnobadaça de Emmanuelle Riva em prol de Jennifer Lawrence. E olha, nada contra Jennifer Lawrence. Longe de mim. A bichinha tem frescor, bochechas, atuação bastante vertical, gana, seriedade e um quê de namorada do ensino médio. Promete ainda saúde para enfileirar meia dúzia de estatuetas carecas na prateleira. Mas peralá, gente. Do outro lado tinha EMMANUELLE RIVA – que, se não bastasse pela atuação acachapante, conseguiu ser a mais velha atriz indicada e cismar de fazer aniversário no dia da cerimônia; de quebra, receberia o Oscar das mãos de outro ator francês, Jean Dujardin. Não era somente prêmio merecido, era roteiro obrigatório. Era a conjunção astral passando na janela. Só a Academia, carolinamente, não viu.

A gente viu. A gente viu Emmanuelle devorar, em Amor, um dos mais indefensáveis papéis a que uma criatura se pode curvar, que é o da fragilidade. Chegamos todos à idade da consciência instintivamente motivados a – se for o caso de afetar alguma coisa – afetar força, muita força; muita força a mais do que a que mora na língua ferina que vestimos no escritório, no sorriso misteriosamente safado que estampamos no primeiro dia de escola nova, no silêncio adultamente sereno com que gritamos na fila do hospital. Estamos sempre cool, estamos sempre bem, impávidos, colossos, equilibrados, blasés. Não ligamos pra seringa, não temos medo de cara feia, não precisamos de professor para nos ajudar com o grandão que rouba nosso lanche todo dia, não sentimos o merthiolate arder, não acusamos o golpe do amor que partiu com todas as roupas na mala, não passamos recibo do chifre, não damos bola para o músculo que estala sob o aparelho da academia, não perdemos um segundito de sono depois do assalto que foi uma bobagem. Zeuses espreguiçando-se no Olimpo, todos. Se tem coisa que nos apetece fingir, se há personagem que nos empolgamos de ser, é este: o que admiramos, o que não temos, o que nos faz suspeitar capacidades a que nos atiramos sem preguiça, o que nos leva a adivinhar talentos, o que nos põe para (em nossa opinião) crescer, galgar massa e degraus, evoluir. Homens de Ferro. Medalhões. Seres projetados à nossa vontade e dessemelhança.

Pois Emmanuelle Riva fez o trabalho de uma vida ao se entregar à personagem que a botou para desaprender. Rija em seus 86 anos recém-arredondados, e por isso mais apta para o tudo-saber, mergulhou na humildade-mor de uma velhice paralisada, dependente, velhice quase de primeira infância. A que já não domina pernas e talheres, que esquece a nudez do corpo depauperado no banho inconsciente de si, que se pede transferida da cadeira para a poltrona, que se descobre urinada sem controle, que gagueja e enrola a língua num desespero de fala impossível, que deixa os cabelos sofrendo nas mãos da escovadora impaciente, que abandona o ato primitivo de comer nas mãos pacientes do marido tornado pai. E há lá coisa mais árdua que mostrar fraqueza inexistente sem trair a vaidade que se revolta nas veias? Há dificuldade maior que encapotar a beleza tão nossa favorita, que esconder o movimento tão livremente confortável, que voltar por própria escolha ao estado vegetativo quando o corpo é todo dos desejos acumulados de vida? Há domínio maior que persuadir nosso orgulho vulcânico a desligar os aparelhos de si? a desligar-se da toada de crescimento que nos move? a suicidar nossos impulsos mais aguerridos de exibir-nos maiores, melhores? a convencer-nos de que morremos, enfim morremos, quando desde o útero nos recitamos que somos belos, somos jovens, somos eternos?

Não sermos quem nos supomos: o pânico absoluto. Pois Emmanuelle entrou com bola e tudo no meio de nossas traves. Entrou de peito aberto, merecendo medalhas, sem nojinho de reproduzir a tristeza tão próxima, tão possível.

Sem medo de ser infeliz.

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