quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Eu, espiã


Sim, também confesso: eu espio. Espio repetidamente. É pilhar uma intimidadezinha dando sopa e contrabandeio mesmo o olho pra dentro da cena (em geral noturna), ansiosa por tirar dali umas tais quais inspirações palpitantes. Espio com alegria e nenhuns escrúpulos. Espio.
 
Não, não é o que vocês estão pensando. Sou uma voyeur de delicadezas.
 
Quê? pois é: espiono o delicado. Coleciono o delicado. Cato na rua as varandinhas com flores – aquelas varandinhas caquéticas que não servem nem pra tombamento do Iphan, mas que ganham ar de sobrado oitocentista quando enfeitadas de pétala por um coração fêmeo. Essas varandinhas têm a dignidade sobre-humana de quem se recusa mártir vivendo o martírio; têm a dignidade funda da beleza natural e insistente. Cato também as bijus escondidas das moças que trabalham embrulhadas numa feiura de uniforme, e no entanto não saem à rua sem um protesto íntimo de originalidade sua, só sua. Cato com gosto especial as minúcias de relação, migalhas espalhadas entre um e outro minuto desatento: uns dedos que se confundem sobre a mesa do restaurante, num casal de velhinhos; um irmão mais velho que leva a si e ao caçula para a escola, direcionando-o abraçadamente pelo ombro; um filho que se distrai da idade marmanja esquecendo a cabeça pousada na da mãe; uma mãe que passa conversando filosofias com o bebê de seis meses que a olha deslumbrado. Umas assim pequenas delícias feitas por instinto ou vocação, por índole de ternura: reúno-as. Reúno-as silenciosamente, metendo o bedelho na entrega alheia como quem invade na ponta dos pés. A mais venerante das bárbaras. A mais discreta das visigodas.  
 
Mas falei lá em cima de cenas noturnas, e tenho o dever de redesapontar quem me lê. O que sou é espiã daqueles detalhes caseiros que, da rua, só à noite se enxergam bem, pelo contraste que providencialmente se forma entre a escurice externa e a janela – palco iluminado. Seguindo a pé, de carro ou ônibus, encanto-me de me imiscuir um bocadinho na fresta da cortina aberta e flagrar uma parede colorida (não há casita visitada que não se dê o luxo de uma parede colorida!), uma falsa porcelana coroando não sei que móvel, um ventilador de teto kitschmente embarrocado, um mensageiro dos ventos tlim-tlinando na grade, uma luminária desabrochante, uma prateleira, um adesivo. Mesmo a pobre das pobres residências não deixa de pôr sua flor no cabelo, não se mostra nunca nua de todo. Há fotos. Há quadros. Há gatos. Há plantas. Há uma qualquer coisa de habitada, de possuída para além do terreno e do CEP. Há uma etiqueta interessante de alma que grita ou cicia uma presença.
 
Nisso fica minha esperança: pessoas (nas condições normais de temperatura e pressão; pessoas não comprometidas pelas piores exceções viciadas ou psicopáticas) nunca abdicam de uma beleza específica no ato de ser pessoas. Pessoas não desistem de uma decoração de mundo. Não abrem mão da delicadeza possível. Persistem na ternura acessível. Insistem na propagação de suas graças, de suas modinhas, de suas escolhas, crentes de que viver – merecendo o verbo – é fazer arquiteturas que furem a brecha do abismo.
 
E é.


2 comentários:

Milena Eich disse...

Fernanda, pelamordeDeus, eu não te conheço pessoalmente, só trabalhei com Fábio e, através dos posts dele fiquei conhecendo esse teu blog e... preciso dizer! O que vc escreve é um encanto, é purificador, ilumina! Coisa mais linda! Um alento de beleza num mundo de muitas leituras miseráveis. Toda vez que passo aqui fico agradecida. Vou compartilhar, tá? As pessoas precisam conhecer. É lindo.

Cidadã do mundo disse...

Somos duas espias kkkkkk. Espiar a vida, colher idéias, enfim...