domingo, 31 de março de 2013

Por desfolhar-me

Em seu “4º. motivo da rosa” (todos os motivos da rosa são leves e bailarinos que só), Cecília epiloga lindamente com um “por desfolhar-me é que não tenho fim”. É como termina um poemeto de oito versos e duzentas léguas de extensão moral; um poemeto com cara de libélula e calibre de bate-estaca, que convida suavemente ao desapego de si mesmo.   

Porque a gente anda por aí com uma autoeconomia insana, com passo de maciez calculada e quinze toneladas de medo neurótico de entrega. A gente anda por aí aparecendo com o corpo, visitando com as pernas, trabalhando com os braços, paquerando com os olhos, consolando com os ditos, mas sonegando alma que é uma sem-vergonhice. A gente anda por aí sem escrever cartão de aniversário, pra fazer estoque de bons dizeres a serem empregados em mais gordas ocasiões. Anda por aí sem ter minuto nem tolerância de ouvir a eternésima repetição da história dos avós, pra não cansar o sorriso a ser gasto no coquetel da empresa. Anda por aí sem guardar um teco de simpatia ao caixa do mercado, pra não esvaziar o tanque de gentilezas com quem não pode garantir encaixe no médico nem desconto de IPI. A gente anda por aí fazendo o minusculamente necessário, pagando a cota mínima para assegurar a não expulsão da vida social, sem amor nem passarice nos movimentos. Sem luz nem propósito nas vísceras. Não vivendo especificamente: levando.

A gente escoa pelos dias com uma avareza de brutos, poupando o ingresso do museu para ter gorjeta pra manicure, evitando o excelente filme triiiiiste para não chegar sem rímel à reunião, desviando do carinho aos cães para não recolher micróbios, escapando ao abraço para não se onerar de amigos, jogando fora o beijo no 11 de junho para não fazer contrato de presente no 12, fugindo ao livro de agruras ficcionais para não sofrer mais do que pela tese de doutorado. A gente não quer se derramar um milímetro além, que assim diminui o ridículo pós-traição; não quer levar amanteigados pra velhinha que divide o quarto com vovó na clínica, que assim já corta o afeto destinado ao breve; não quer aninhar o pardal que está quietito de dores no jardim, que assim a filha não morre de paixão quando a vidinha se romper de todo. A gente não quer risco de ferida, não quer chance de arranhão, perigo de furar a crosta protetora, probabilidade de detonar nossa camada de ozônio. Temos horror a que vaze uma existência inteira de energia vital pelo mais ínfimo buraquinho no dique.

E no entanto é no gastar-se, é no distribuir-se que essa gasolina se pereniza. Outra é a lógica, que não a do cofre; faz-se preciso esgotar-se para render, numa poupança às avessas. Por nos desfolharmos em ajuda a mais constante, em amanteigados o mais presentes, em memória preenchida pelo aniversário do filho da secretária, em agenda tomada pela brincadeira voluntária na ala de câncer infantil, em caixinhas de papelão que ninam pardais feridos, em choros de ternura que enterram pardais desistentes, em paciências infinitas que dão help na montagem dos bem-casados da sobrinha, em flores gratuitas, em cartões de boas-sortes, em atenções de lavanda no travesseiro e massagem nas têmporas, em torcida solidária pelo time, em ombro consolante pelo time – por nos desfolharmos em pedaços, em pequenezas representantes de nós, em polens de boa vontade, é que nos plantamos em lugares múltiplos; fazemo-nos franquias, nos reproduzimos, nos semeamos. Só excedemos nossa linha particular de tempo quando voamos do pedestal, evaporamos do açude e nos caímos em chuva.

Perdura quem perde a dureza de existir sem ser interrompido.

sábado, 30 de março de 2013

A maçã no escuro

Sei lá se é sinal desses tempos em que ninguém guarda mais rigor e silêncio ou se sempre foi assim, e eu já não notava de tapada. Mas, vendo minhas alunas adolescentinhas, comecei a cismar que meninas de 13 anos não amam mais como outrora. E sustente-se que não falo de ser peguete, ser fiquete, ser qualquer coisete com urgência e sem apego; falo de amor mesmo, amorice sonhada e exclusiva, que pode mudar de feição mas está sempre lá, recolhendo suspiros de garota antes de o último abajur da casa apagar a luz. Pois até esse amor julieto, com suas qualidades tão propriamente ditas, anda mudando de cara ou de voz. Antes, na classe, era a paixão obrigatória dos meninos que se gritava e se difundia, como que forçada a empavoar-se para passar comprovante de testosterona: o João Pedro é homenzito oficial, está gostando da Gisela e a escola inteirinha sabe – da professora de Geografia ao Chuí. O gostar feminino era, usualmente, mais restrito a brincadeiras de “verdade ou consequência” feitas em fins (inícios, meios) de trabalho de grupo na casa da Carla ou da Luciana; mesmo ao explodir era sutil, dito à socapa ou proclamado não oralmente nos cadernos de pergunta que as gurias passavam uma à outra, e que eram primórdios de Facebook. Até para cair em boca de Matilde o gostar das meninas se fazia elegante, demoroso, valorizado como informação que se arranca com propina, disfarçado entre risitos e outros tudos-nadas que selam cumplicidades de décadas.

O mais delicado: tantas vezes os amorinhos das pequenas simplesmente não vinham à tona. Eram mastigados fruta-proibidamente na solidão do recreio, espiantes, insuspeitos, ou talvez suspeitos mas nunca confirmados, pois que algumas de nós tratavam aquele jovem querer com a sacralidade necessária. Para confidentes havia os diários com chavinha e essência de boneca, havia o cantarolamento no banho, os momentos de vitrola e os andares no jardim. Não era preciso nem pensável que toda a gente estivesse informada e comentosa, que de uma parte à outra da sala fossem bradados os amores como estes de minhas alunas; não era de modo algum essencial a publicidade como marco de existência, sabia-se existir invisivelmente ou quase, sem dar satisfações a cada pardal que nos filmasse os passos e nos pedisse contas. Não havia blogs que berrassem o que as chavinhas de diário mantinham calmo e intacto, não havia (se não explicitamente provocássemos) fórum tão público de parcela tão privada, tão isenta de impostos. Nem havia, que eu me lembre, detalhes palpitantes tão narrados aos professores com tanta discrição de polichinelo.

Ninguém vá pensar que eu compactue dos cantares-de-galo masculinos e ache que esses “não são modos” de mocinha. Ninguém vá risivelmente acreditar que eu tolere a prosápia dos boys e imponha freirices às senhoritas. Longe disso. Sempre lamentei o desassombro com que os rapazes divulgavam seus segredilhos, e, se lamento o mesmo nelas agora, é por ver cair uma última trincheira. Não lastimo pelo gênero de quem exibe seu amor nascente, lastimo pelo amor itself, pouco a pouco menos parecido com seu rosto próprio. Independentemente do gritador, sinto pelo amor que não é coisa de ser gritada dos telhados, como bem dizia Quintana; sinto pelo amor que perde força sem o tempo devido de reconhecimento e estufa, sem o berçário da reflexão, sem andaimes de intimidade, sem o altar das noites sorridas ou choradas só entre janela e travesseiro. E sinto pelo menino ou menina que perde em idade e poesia com esse amor muito verde, muito pele, muito cedo para tanta propaganda. Sinto pelo garoto ou garota que expõe o querer à luz depressa demais, que lhe queima com susto e sol as pétalas só crescíveis em remanso, que força a saída das asas só construíveis em recato. Amor começa sozinho, põe cimento sozinho, para depois de muita sozinhez evoluir, docemente, do um para o dois – antes, tão antes de passar ao vinte e ao mil.

Pobre do amor esturricado de olhos quando mesmo o seu não se abriu.

sexta-feira, 29 de março de 2013

De um lado só

Foi isso – “Argh, passei o dia chorando de um lado só!” – que exclamei finalmente, depois de mais uma crise aquífera do olho direito. Sim, meu olho direito às vezes dá a louca e toca de doer, doer e chorar, chorar que não é bolinho, especialmente por claridade maior. Eis que a exclamação foi, pois, denotativa, e só passados segundos é que me dei conta do teor figurado. Chorar de um lado só? ora pitombas, é o que mais fazemos rotina afora; e abençoados somos quando assim se passa a coisa. Sortudos (de loteria acumulada) somos quando o contexto nos restringe a chorar por via de mão única.

Eu mesma. Numa floresta urbana de famílias despencadas, violentas, confusas, separadas, doentias, indiferentes, viciadas, gritosas, fragmentadas de excesso ou de falta, de herança ou de vácuo – como não ser grata pela infância sólida, normal, classe-mediamente brincada, sem brigas domésticas, sem mimos nem murros, com livros e filmes à penca, sem ciúme nem conflito de irmão? como não agradecer um mundo de Fábios fabulosos e sogras fofas, estavelmente puro de qualquer esfera nociva? Pelo lado emocional que choram muitos, não choro eu. Em contrapartida, remo há quase cinco anos nas galés do município e há oito nas do estado, e, por mais que não tenha (ainda) me calhado o pior dos mundos profissionais, parquinho de diversão é que isso não é; nem são raras as datas de profundo azedume, fome de competência, pasmaceira de ideias, desesperança de resultados. Dar aula é penoso por vocação. Dar aula em nome do governo, porém, para aqueles que o governo mesmo encaminha à burrice, para aqueles que o governo prefere superficiais e manipuláveis, para aqueles que o governo deseja estragadinhos e precocemente grávidos (alguém tem de embarrigar de eleitores para o futuro e mesmo governo), é fazer de giz e pilot os únicos soldaditos dum exército de Brancaleone previamente vencido. Eu choro desse lado só, bastante e sempre: remo nas galés tendo por antagonistas os ajudados. Remo duro e remo na contramão.

Há os profissionalmente felicíssimos que fazem guerra perpétua contra a fobia de infância. Há os realizados no casamento que despejam no travesseiro a ausência emocional do filho. Há os pais de filhos-modelo que despejam no divã a agonia do chefe perseguidor. Há os crescidos entre moedas de ouro que lacrimejam doenças. Há os búfalos de saúde que se embananam em dívidas. Há os residentes no Vale do Loire que se atormentam em dúvidas. Há os respeitados que se tomam como feios, os belos que se analisam como burros, os sábios que se amarguram de sozinhos, os populares que têm úlcera de perdões não dados, os pacíficos que se afligem de anos não estudados. Há todos, há tudo; há, sobretudo, necessidade de visão corajosa e compensante com o olho que resta.

Viver: dançar a possível festa.

quinta-feira, 28 de março de 2013

Em berço esplêndido

Reli a entrevista de Stella Maris Rezende, autora infantojuvenil de A mocinha do Mercado Central. Não, não li A mocinha do Mercado Central (de 2011), mas a reportagem resgatada de 2012 não economizou incentivo: há uma protagonista de 18 anos que sai de sua pequena e mineira Dores do Indaiá para aléns cidades, e vai acrescentando nomes ao seu próprio. Vai somando trabalhos, amigos e até um personagem Selton Mello (sim, ele).  Mais interessante ainda me pareceu a linguagem da autora, pintadíssima de riquezas mineiras, gírias, brinquedos sonoros; uns críticos a dizem “a Guimarães Rosa de crianças e adolescentes”. Mais-mais interessante ainda me soou a resposta de Stella Maris à questão “como sofisticar a leitura dos jovens?”: “A juventude, ao atiçar a imaginação e a sensibilidade, se apaixona por textos mais elaborados. O jovem leitor pode ser sofisticado, exigir mais da vida, ler literatura de fato, porque o ser humano nasceu para a sofisticação, para o mais bonito e bem-feito. [...]”.

Emoção. Alguém também acha que o ser humano nasceu para o sofisticado, sobretudo e fielmente para o sofisticado. Alguém concorda que, sim, há níveis; há diferenciações para além da uniformização politicamente correta; há leituras e leituras, canções e canções, vocabulários e vocabulários. Assim não fosse, não principiaríamos a vida cultural lendo A borboleta Lilica e seu laço de fita para mais tarde levar Machado pra cama, devorando-lhe os sarcasmos. Não ouviríamos Galinha Pintadinha no berço para, anos depois, carregar o mp3 com Beatles. Não passaríamos da cartilha, não chegaríamos a Lobato, não evoluiríamos da beleza rítmica e fácil do chocalho para uma sutileza macia de violoncelo. Nunca seríamos gente de distinguir entre Biancas e Júlias de banca de jornal e um Flaubert ou Balzac na Travessa. Uma coisa é melhor que a outra? sem pudores: é melhor que a outra. Negar uma tão limpa verdade seria corroborar uma demagogia eficientíssima em nivelar-nos o mais possivelmente por baixo.

Não quer dizer que eu rejeite a arte (digamos) mais primeira; sou mesmo amiga de umas necessárias bobices em festa, dancei o tchan como toda mortal de minha adolescência, curto umas tolices kitsch pelo menos pra dar risada. Ninguém perde 5 pontos de Q.I. toda vez que grunhe “ai, se eu te pego” lavando roupa. Mas a questão está na variedade. Na variação. O que não é possível, gente, é a criatura de 34, 46 anos conservar Teló como ícone supremo e vaiar um infeliz que lhe queira fazer a caridade de tocar Vinícius. O que não pode é o sujeito, na existência toda de seis décadas, lembrar-se só e vagamente de uma fotonovela Whatever do coração que saía no Cruzeiro e bater pé que aquilo, sim, era literatura. O que não pode é o cinquentão pseudoevoluído bocejar perante Monet e declarar que a tia-avó entrou para um cursito de pintura e anda produzindo iguais rabiscos. O que não pode é não ter olho, é não ter cabeça, é não ter outros sentidos nem vísceras bastantes para diferenciar a palha da lenha, a ideia do engenho, a fogueira do incêndio. Não pode igualar as fases da criação; não pode confundir os dois acordes do hit chicletoso com as dissonâncias estudadas da rapsódia; não pode nivelar o filmeco-Disney-para-a-família e o oscarizável de tanto roteiro e polimento. Durma com essa: não-po-de. A turma do “pode” quer só cobrir de álibi ideológico (esburacado) o mau e velho populismo, a péssima e idosa preguiça.  

Somos feitos sim para a sofisticação. Feitos para atravessar fases, ter olhos progressivamente desbastados, constantemente abertos, despertados, instruídos. Somos feitos para aceitar ligeiramente o entretenimento de produção ligeira, e cair de joelhos ante a composição meticulosa. Somos feitos para, também em termos de maturidade crítica, passar da infância à juventude e à adultice, sendo mais e mais seduzidos para os detalhamentos que antes nos achavam cegos; que antes achávamos chatos. Somos feitos para construir camadas umas sobre outras, empilhando experiência – que, se tira um pouco o prazer mais inocentinho, retribui com silêncio mais feliz. Somos feitos para não gargalhar sempre das mesmas piadas. Somos feitos para pilhar furos no roteiro. Feitos para identificar músculos e artérias na escultura de Rodin. Feitos para gastar horas embevecidas xeretando os enigmas de Escher. Feitos para ir enjoando de quadrinhos e passar à graphic novel. Feitos para sentir pelitos eriçando ao ler Castro Alves em voz alta. Feitos para – enxergando sombras, enxergando degraus, tons, entonações, nuances, ironias, demais figuras de linguagem, âmbitos, níveis – feitos para ser conquistados pelo muito e não engabelados pelo pouco. Feitos para ser público perigoso e atento, eleitor matreiro. Feitos para ser só muito artisticamente impressionáveis. Docemente difíceis.

Somos (astronautas) feitos para ver o chão muito de cima. Azul.

quarta-feira, 27 de março de 2013

Quero um dia

“Quero um dia para chorar./ Mas a vida vai tão depressa!” – escreve Cecília Meireles em doçura e lamento, resumindo-nos todos. Eu também, Cecília. A vida vai tão angustiosamente depressa quando não escolhemos o tempo; quando o recebemos empacotado de afazerinhos e afazerões que, sem pergunta nem paixão nem verdadeira posse, lhe calharam. A vida vai tão depressa quando os meses passam a se amontoar, os doze, nos arredores do Natal; quando as semanas escorrem gêmeas a ponto de não se distinguir o dia vivido no início desta do experimentado no final da retrasada, a ponto de não se recordar o último filme, os fatos do último filme, o período que nos separa do último filme. A vida vai tão depressa. Quanto mais preenchida a manhã, quanto maior a são silvestre de cada 24 horas, quanto mais acarpetada de tarefas a agenda que parece estufar por conta própria – menos o tempo rende, menos brota, menos oferece. Quanto mais há no tempo, menos tempo há, digno e lembrável como se precisa. A vida vai tão, tão, tão depressa em suas urgências (que crescem quando atendidas), vai tão corrida em suas ocorrências, vai tão afoita em suas importâncias, que só se deixa possuir inteira naqueles segundinhos em que nos passa diante dos olhos, agarrada a nós pela ameaça de virar o seu contrário. A vida anda besta, anda vaidosa, anda prosa demais de si mesma, crendo-se eterna feito poesia.

É por isso que quero um dia.

Quero um dia desagendado, desorário, um dia-bônus, um dia inexistente; um 30 de fevereiro, um 45 de março, um 82 de julho que desabe sem querer na folhinha, que a gente perceba mas seja impegável pelo trabalho, inquantificável pelos boletos de conta, indescobrível para efeitos de prazo, imponderável por compromissos de toda sorte. Inclassificavelmente imprevisível. Quero esse dia livre, livre para carpir a vida sem telefones; quero o dia de solidões opcionais, sem nariz torcido de aluno nem obrigação de novela. Um dia sem jornais. Um dia sem capítulos. O dia-mar no qual se lembra de cheirar e tocar a vida como ser presente que é, não o quiabo que finge estar sendo. O dia sem notícias no qual se sofre à larga pelas notícias constantes e anteriores, o dia em que a gente não precisa virar a cara por não ter tempo, o dia de 9 mil horas no qual se tem todo o tempo suposto, renovável por igual período. O dia sem pragmática, psicodélico para os que quiserem, árcade para os que assim o desejarem; o dia sem vontade de sumir nem morrer, porque ele mesmo já é brincadeira de morte e sumiço; o dia sem aspirador, dia sem louça, dia sem Omo Progress, dia com salário próprio, dia no qual todos os restaurantes estão disponíveis. Quero um dia com inacabáveis horas para fazer tantas necessárias listas, ou dia sem listas necessárias para todo o lindo sempre. Quero um dia com outros assim posteriores dias, e outro e outro, até um diferente dia seguinte desistir de haver. Até um diferente dia seguinte abdicar, por cansaço, de atas e assinaturas e despertadores. Quero um dia humilde de suas horas infindas, um dia que mesmo intérmino não fique prosa de ir além do dia. 

Um dia-poesia.

terça-feira, 26 de março de 2013

Criar repertório

Na época do carnaval, a Revista dO Globo fez matéria de capa com a recém-eleita Musa dos Blocos do prêmio Serpentina de Ouro: Daniela Bahiense. Linda e leve, a menina de 26. Lembro que elogiou alegremente o ato de caminhar pelo Centro do Rio, onde trabalha, e para justificar o entusiasmo meteu essa: “Gosto de andar, de ver os prédios antigos. Se você fica em casa esperando as coisas acontecerem, não cria repertório”. 

“Não cria repertório”, fiquei mastigando o conceito. Concordo à-beçamente com Daniela; é preciso criar repertório. Só não sou partidária do método. Detesto, admito, ser levada a me enfiar naquelas multidões do Centro – inandáveis se você não vai de tênis com amortecedor para triunfar de paralelepípedos, irrespiráveis se você percorre minicalçada que não deixa desviar do cigarro à frente, chovíveis em excesso se você pega outra minicalçada que não deixa desviar de ar-condicionado mijão. Adoro o Centro espiritualmente e não lhe aturo o corpo. Mas a sorte é que ir ao Centro é metonímia. Até sair de casa é metonímia. O que Daniela quis dizer, aprofundando as camadas, foi que a inércia mental e cultural de uma criatura que fica vendo a banda passar impede-a de crescer, amanhecer e dar fruto. Pouco importa se o ser humano em questão caminha como um alucinado do Largo do Machado ao da Carioca, do Catumbi à Cinelândia, conhecendo todas as bodegas e bibocas na maratona. Se é com janela trancada que caminha, ar fresco não entra. Se é com olhar vidrado e ouvido mouco que caminha, todo possível repertório bate e volta.

Criar repertório é uma olimpíada sobretudo interna. Demanda estado de prontidão, fervor de atenção, mais do que quilometragem rodada. Já vi gente classe-média, professora, com uma década de vida a mais do que eu e total ignorância a respeito dA noviça rebelde e Mary Poppins – para ficar em dois batidões de Sessão da tarde. Por quê? porque é pessoa que seguiu os anos sem tomar posse deles, distraída dos arredores, isenta de apropriação dos vários tipos de inteligência espalhados na rotina. Para se criar repertório colaboram gordamente os livros, os filmes, os jornais bebidos com suficiente devoção. Colaboram as histórias colhidas na padaria, os comentários pilhados no shopping, as cenas garimpadas no YouTube, os causos entredescobertos no ônibus, os acintes presenciados na esquina, os assaltos narrados na portaria, as piadas fisgadas no elevador, os sintomas relatados por senhorinhas de metrô, as tendências semeadas e brotadas de novela. A flor que você não sabia que era a do mês, a cor que você ignorava que era a da hora, o santo que você não desconfiava que era o do dia, a informação de rádio-relógio que te fez finalmente entender a questão árabe-israelense, a aula gratuita de yoga que te apresentou músculos perdidos na faxina, a revirada de gavetas que te retornou um eudolescente perdido na mudança, a colega de seção que te vendeu com elogios o amaciante perfeito – todas essas miudezinhas de vida, esses cacos de tempo que andam aí salpicados na vida mesma e no tempo mesmo, equivalem a criar o mais sólido repertório, quando há respeito e ternura bastantes pelos microconteúdos que nos constroem. Excetuo, naturalmente, os conteúdos que crescem vira-latas, erva-daninhos: fofocas e boatos e mexericos de toda sorte, além de aprendizados perfeitamente envenenantes, como a feitura de uma bomba. Esses não são repertório, são lixo hospitalar a ser incinerado com outros tantos, outros similares efeitos colaterais de estar vivo.

Mas se houver uma só escolha de método repertorial: viagens. Sem dúvida, as viagens – que é quando você finalmente mora nas leituras e filmes, ou quando melhor os metaboliza. Aí não é andar no Centro, é abdicar do centro e andar no mundo, engolfado pela instrutivíssima constatação da própria ignorância.

Entender-se vazio é véspera faminta de aprender.

segunda-feira, 25 de março de 2013

Coisas nossas

Dias atrás vi uma forma de morte: quadros no lixo.

Se eram, se deixavam de ser belos; se eram ou não jovens picassos e monets, magrittes e rembrandts; se mil ou ninguém mataria para tê-los no cofre ou no lugar de honra sobre o piano de cauda – importa pouco. Importa nada. Havia quadros no lixo; quadros em si, nus de assinatura ou de adjunto adnominal. Filhos de arte tosca ou excelente, flores de habilidade ou inexperiência, manifestos ou sussurros, obras-primíssimas ou tentativas: importa nada. Havia quadros no lixo. E subitamente o entorno suspirou, magoado de decepções; o mundo se provou um bocadinho mais pobre e ignorante porque havia quadros no lixo.

Por que não pode haver quadros no lixo? Porque há coisas, simplesmente há coisas e seres envolvidos em metáfora e dogma, por lei imunes ao incêndio, ao mofo, ao esquecimento, ao desprezo, ao rasgo, ao consumado abandono. Há coisas que descem à raiz de nós, nos essencialmente abraçam e pegam aura de sagradas por empréstimo da gente. Assim os quadros – sempre, com ou sem técnica, nascidos de uma visão ou de um rojo. Cada vez que se deitam quadros à lixeira (a não ser que injuriosos), joga-se fora um momento de escolha, um grito pessoal de cor, de opinião, de necessidade mesma. Cada vez que se taca na indiferença uma imagem que alguém elaborou pelas artes que tinha, sobra um mundo menos disponível, menos disposto a encontrar um olhar alma-gêmeo para qualquer versão de beleza. Sobra um tantinho mais de cinismo plástico, que não deixa de secar mais um galhito da árvore gorda de possibilidades.

Também os livros. Que assassino quem dispensa, para todo o sempre, livros! Livros não são entes que desçam à caçamba da Comlurb, livros são amostras d’alma que até fisicamente ganham alma própria, com seu cheiro e sua amorável tinta, e sua-tão-sua textura singular ao tato. Livros são excertos de pessoa, quase humanoides com cara e voz, bebês que não se desperdiçam ao léu sem antes providenciar-se adoção. Livros são tão úmidos de vida quanto o cachorrito que rói a cortina e a velha samambaia que transformou a cabeceira em franquia da Amazônia. São igualmente indispensáveis sem ter futuro assegurado, quente e macio em outra mão, em outro seio. Livros não são bicho de lixo. São filhos eternamente em processo, amores chegantes pela própria natureza.    

Também as bonecas de pano (nem as digo industrializadas, de plástico substituível). Também os DVDs de filme que apenas não nos encontram mais em modo de palpitação. Também as cartas convenientemente idosas e ridículas. Também os álbuns de figurinha que nos moveram meses a fio numa sofreguidão de Copa do Mundo. Também as caixas de lata ou madeira descascante com relíquias do que fomos – não relíquias somente cacarecas, mas daquelas que dão laço escoteiro em alguma esquina do miocárdio, de tão estreitamente coladas àquele período de apaixonamento, àquela esperança, àquele dia. Também a coleção de futebol de botão, de desenhos do filho na creche, de desenhos seus na creche, de redações na escola, de poemas distraídos em aula, de diários com essência de morango socados na gaveta. Metonímias demasiado cheias, demasiado nossas, para de repente irem acabar no limbo do como se nunca. Como se nunca, nelas, alguém houvesse por determinado tempo existido.

Jogar fora é preciso. Mas a vida, a vida, a vida – também só existe reavivada.

domingo, 24 de março de 2013

Chegar de costas

“Sabe quando a pessoa já chega de costas? Pois é. Eu hoje aqui.” Assim meio-murmurou uma colega de trabalho, visivelmente exaustíssima. Eu nunca tinha ouvido a expressão, mas o contexto e as olheiras da pronunciante não tiveram dificuldade de esclarecê-la: chegar de costas é já aportar onde quer que seja em posição de ir embora, entrar com o espírito de ré, embicado para a saída. Estar e não ter vindo. Vir e não ser vindo. Vestir o dia, tarde ou noite com pijama por baixo.

Me pré-defendo ao esclarecer que não tem a ver, em cinema-teatro-palestra, com gostar de sentar na ponta. Sempre sento na ponta, por motivos de praticidade explícita: cada vez mais a distância entre fileiras é de 0,7 centímetro, e me amofino horrores de amofinar pessoas na passagem; mais: quero garantir meu maior conforto em quaisquer emergências banheiras. O providencial lugarzito na ponta, longe de me pôr na defensiva, dá-me tranquilidade de entrega. Com a fácil evasão assegurada, não há preocupações azedando a relação entre mim e o conteúdo que enche a sala. Não quero, mas posso sair. Diferentíssimo de a pessoa chegar do avesso, querendo e não podendo girar o volante, toda trabalhada na amargura da presença obrigatória.

Aluno, por exemplo, é uma peste para chegar de costas. Vem normalmente tresnoitado – ainda que às duas da tarde –, de cara amarrada com nó górdio, de olhos mal-amados ou descrentes, ou ambos. Vem se arrastando, vem se liquefazendo pelas paredes, vem se lagartixando nas portas e derretendo pelas cadeiras, órfão de consciência e interesse – mesmo aquele interesse de artifício, puramente profissional, que se reserva às coisas não prazerosas mas úteis. É certo que eu não gostava de estudar, porém o ter de me gasolinava suficientemente. Acabou. Quase acabou aquela espécie de aluno que não considerava sua mera presença, mole e alheia, como favor inestimável ao professor. O que hoje “comparece” às aulas são 85% de walking deads restritos a dúvidas viscerais, edificantes: “Posso ir ao banheiro?”, “Quando é o próximo feriado?”, “Vai liberar mais cedo hoje, fessora?”. Monumentos erguidos ao mais nacional dos descasos, à mais patriótica das ineficiências.

Também me dá vergonha quando vejo um desses casais modernitchos que se esbarram no meio do dia, mas não se estão: um com seu tablet para um lado, pinto no lixo, mostrando ao outro os últimos gadgets virtuais adicionados; o outro meio atento à exibição, meio checando o Face no celular, risonho e comunicativo como se ali estivessem os 3.047 amigos todos; os dois sem ser dois, sendo antes multidão de solitários, isentos de soma verdadeira que demanda mais que o cruzar fracionado de olhos. Por sinal, que se passa neste mundo que ando frequentando para virar tribo pós-apocalíptica, cada qual zumbizado por sua matrix de bolso? Que raios aconteceu de tão ligeiro, de tão vicioso há coisa de cinco ou seis anos, a ponto de nos tornar exército de fantasmas fisgados pela realidade que não é? Que nos aconteceu a ponto de desmarcarmos futuros, de ignorarmos presentes, de renunciarmos à vida com oxigênio – com a dor e a delícia do oxigênio – em benefício de telinhas brilhantes, dessas telinhas que GPSsam 26 horas por dia onde estamos só para dedurarem onde gostaríamos de não estar?   

Degeneramos numa raça de impacientes que almoça mastigando sem gosto, fissurada no barulhito de “mensagem! mensagem!”. Involuímos para um Homo aborrecidus que espia o horário na telinha brilhante após 14 minutos de filme. Regredimos à posição fetal de uma espécie caramuja, o universo sou eu; tudo (para além de minha urgência de nada) gera insuperável enfado, rebeldia sem causa de desenfronhar-me, vontade sem razão de descompromissar-me. Right now. Pra quê? pra ir o mais rápido possível entediar-me em outro lugar. Há tantos nos quais compartilhar minha ausência! 

Existir também é facultativo. Exige preencher de escolha o acaso da aparência.

sábado, 23 de março de 2013

La vie en rose

Escrevendo sobre o filme O náufrago no quase homônimo texto “A náufraga”, Marina Colasanti fala quão diferente seria a história se, em vez de um Tom Hanks, a ilha deserta recebesse uma nossa colega de gênero. Não haveria morada “na gruta cinzenta e inóspita”: o braço feminino depressinha trançava uma casa habitável, nem que fosse apenas para as noites livres de chuva. Não se comeria com as mãos, e sim com palitos japoneses cortados com a lâmina dos patins. Panelas e pratos seriam assados da argila disponível; algum sal, obtido do mar domesticado; mesmo um leite de coco não deixaria de combater “o tédio alimentar”da zona sem tempero. Mulher também não ia se dar por contente com um incorpóreo Wilson. Segundo a autora, teria parido uma boneca com braços e perninhas – uma sua igual de cara, corpo, madeixa e modelito. Que isso de gestar pequenos humanos é bem de seu departamento.

Marina arremata: “Para um homem, vencer a natureza é afirmar-se como homem. E Tom vence a natureza duplamente, continuando vivo e escapando da ilha. Uma mulher vence a natureza de outro modo, organizando-a. [...] Uma mulher não teria talvez a força física para escapar da ilha. Mas quando alguém finalmente lá chegasse, já não encontraria uma ilha selvagem”.

Discutir como com uma tal Marina? That’s it: mulher é o hotel humano, é a civilizadora pelo lado do conforto e não da beligerância. É a aconchegadora; a amaciadora. Aliás, fujo ao caixote: isso não é coisa intransferivelmente de mulher, mas do feminino – o feminino, o aproximador, o fazedor de uniões, o amestrador de violências, o eros que vive nas mulheres e nos homens. O espírito não desbravador, e sim azulejador; não bandeirante, não cruzado, não guerreiro da Távola Redonda, não soldado do Vietnã ou do Iraque, e sim asfaltador e hospedeiro, decorador e carteiro, faxineiro e agrupador. O masculino (que vive nos homens e nas mulheres) compete e consegue, força e se força, possui e evolui e domina no macro, no grande, no grosso, no trator que aplaina sem fazer caso do detalhe. O feminino vai lá e salva a planta miudinha do trator. O feminino põe quadros e almofadas, senta o art toy na prateleira, enche a casa de livros, compra guardanapos (coloridos). Compra acessórios de cozinha inexpugnáveis. O feminino se pergunta por que chora a criança desconhecida, pergunta à criança desconhecida por que chora. O feminino adivinha o outro pela cara, sabe o que significa o sorrir para a esquerda ou para a direita, volta na loja porque se esqueceu de desejar feliz Páscoa, entra no ônibus dando bom-dia. O feminino de mulheres e de homens reconhece claramente a diferença de diet para light, de alumínio para inox, de xampu para condicionador, do sucrilho vermelho para o azul. O masculino aproxima o longe de telescópio; o feminino aproxima o perto de lupa. O masculino tem roda, o feminino tem asa.

Ar e arte do feminino é ser endereço para quem volta pra casa.

sexta-feira, 22 de março de 2013

O bagaço da laranja

“Eles espremem a laranja até o bagaço”, exasperou-se o Fábio solidariamente, após eu me exasperar diante da octogésima quarta aparição mensal de quem, de quem, de quem? Naaaaaaaldo – exclamava em êxtase o apresentador do programa. Naldo, gente, Naldo todo dia. A toda hora. É para enlouquecer um ser humano minimamente alérgico ao óbvio. E quando não é Naldo, é fatalmente Neymar. Tome Neymar! no comercial do carro, do celular, do cartão, do apê, da TV, da TV por assinatura, do chiclete, da mamadeira, do varal, da tigela de barro, do leite em pó, da rua, da chuva, da fazenda, da casinha de sapê. Tome Neymar como entrevistado de honra no sofá do Jô (tem alguma cor de cueca ou tipo sanguíneo que alguém já não saiba do Neymar?), tome Neymar sambando no Esquenta, sapeca-iaiando na boate da modinha, namorando a gatinha da novela, mostrando a nova tatuagem imostrável (se não fez, vai fazer) na globo.com; tudo tanto e tão muito, tão bate-estacado, que me admira não terem dado ainda, ao topete do Neymar, uma qualquer participaçãozinha nos lucros do assassinato de Hugo Chávez. Sim, porque toda eminência mundial que se preze foi ali dar uma assassinada em Hugo Chávez. Eu mesma não ponho o dedito no fogo pelo Naldo.

Agora me digam. Para que esse enfastiamento cotidiano, esse chafurdamento involuntário nas mesmas e mesmas notícias, nos personagens de sempre e sempre? Para que essa abastança que parece castigo de mãe monstra do Supercine (“Ah, você gosta disso? Então vai comer e comer e comer e comer até vomitar, queridote!”)? Para que envenenar o público com seus próprios favoritos, para que enjoá-lo precocemente da abundância de suas escolhas – para que um capitalismo mais colérico do que aproveitante, um sistema que tão ressentidamente gasta o trunfo a ponto de expô-lo à golfada e refluxo das massas? Nosso capitalismo, que já foi apenas selvagem (carcará preciso que pega, mata e come), virou sádico ruminante; é com discreta maldade que mastiga, mastiga, mastiga a bola da vez, torturando-a de sucesso impossível. Cada pseudovítima sabe que a coisa não dura e virá breve o devoramento inevitável, mas segue sangrado pela mídia muito tralalá da vida, fingindo que não sente o estalar dos ossos. Quando se percebe vazio, tenta emplacar uma conta polêmica no Twitter ou capa de Playboy. É tarde. Os tentáculos são muitos, são exagerados hoje em dia: sugam mais loucamente e decretam fim de caso mais rápido.  

Eu, sendo a mídia, não ia deixar “celebridade” esquentar lugar, para justamente evitar desilusões que geram suicídio profissional. Não só para isso: muito especialmente para servir cardápio suculento, farto, rico, cheio das várias interessâncias desperdiçadas no universo de repetições. Um dia de funks e afins, vá lá; no seguinte, Bach é a estrela; no terceiro, maracatu; em sequência, chorinho. Um dia de Neymar, outro protagonizado pela senhorinha que cria o neto solitária; um dia de Bruna Marquezine, em seguida um inteiramente concentrado no moleque que acabou de descobrir Clarice Lispector. Uma hora de documentário sobre a marcha do pinguim imperador, duas de homenagem ao centenário de algum poeta norueguês, três de filme passado em íntegra legendada, sem intervalos. Que eu abriria falência em meia semana é coisa líquida e certa – mas havia de ser a mais explosiva half week alguma vez veiculada, limpa de toda previsibilidade, a se assistir de olhos frescos; olhos sempre começantes. Porque saudar o mundo cada manhã e nele achar o mesmo da véspera, congelado, enclichezado, sufocado ad nauseam de recursos pequenos:

Menos. Cada vez eu quero menos.

quinta-feira, 21 de março de 2013

De dentro para fora

Nesta época de ovos e nasceres, surge uma bonitice no Face: “Se um ovo se quebra por uma força externa, a vida acaba. Porém, se ele se quebra por uma força interna, a vida começa. As melhores coisas começam a partir de dentro”. Justíssimo – e duma simplicidade tão pasmante que eu nunca me dera ao trabalho de pensar na coisa. A mudança que nos aborda de fora, violentando de pressas uma decisão que demoraria, talvez, mais par de meses para amadurecer e adocicar, tanto grita no ouvido que acaba ressecando-nos de desgosto. A resolução obrigatória é como erosão nas geografias reais de um coraçãozito, o qual, mais dia menos dia, revolta-se contra o desmatamento e apresenta a conta. Não ocorre assim com as resoluções autênticas, fincadas, enraizadas: estas são vegetação nativa. Estas crescem nas exatas temperaturas, por conhecer o terreno; estas se amarram nos vãos do solo, espertas e informadas, e se tornam intiráveis. Inarrancáveis. Infinitas enquanto suas.   

Obesos e fumantes, por exemplo. Adianta esfregar a cara dum ser humano em estatísticas mórbidas, adianta desfilar gráficos frios e imagens impactantes, adianta chantagear com o fim da relação ou dar susto fugindo pra casa da mãe, adianta – se não se toca, vez alguma, no ponto nevrálgico? Conseguem-se promessas e desgastes, e uma ou outra tentativa que rola pelo esgoto assim que a relação efetivamente acaba, assim que uma primeira onda joga areia no bunker de mentira. Vêm as recaídas: piores, mais vingativas, mais raivosas, com mais abandono às próprias fraquezas, falsamente invencíveis. Mas um dia o fumante é tomado inteiro duma epifania; encara que o filho tapa o nariz a seu lado, mesmo com a desgraça apagada. Que seu cabelo, suas roupas, todo ele exala brasa densa e morta. E um dia o obeso é capturado numa revelação: sente-se mal, velha e cansadamente mal, enjoadamente mal dentro de si e de todos os antigos trajes. Pronto. Eis, começando, um ex-fumante e um ex-obeso – naquele instante preciso. Não houve broncas, não houve pressões; quebrou-se, a seu tempo, a casca. Atingiu-se aquele ponto G da decisão que todos guardam em cofre incerto. Às vezes a vaidadezinha mais supérflua é a peça de encaixe; e desde aí, virada a chave do motor, não tem para ninguém. Inicia-se a estrada suada, sim, mas anestesiada pela certeza – que não há como a certeza para fazer um santo dopping.

Igualzinhamente agem os “amores” estrupícios, que você não consegue largar até ser invadido pelo nojo (o nojo crucial que suplanta racionalizações). Igualzinhamente se comportam as fendas de caráter, incorrigíveis até que o portador seja tsunamizado de vergonha (a vergonha que supera encarceramentos). Da mesma forma os ressentimentos históricos, imortais até que a exaustão cresça mais que os motivos. Do mesmo jeito as demissões do emprego eterno, impensáveis até que a doença moral exceda os ganhos. Do mesmo modo os vícios outros. As revoltas imotivadas. As passividades políticas. Os males físicos ignorados. Os pânicos de estimação. Adianta aconselhar, guiar, recomendar, sempre e muito; mas adianta forçar barras? não adianta: turning points são caixas eletrônicos de manobra individual e senha intransferível. Travam noutra mão, implodem de outra maneira.

Só ficamos invencíveis quando deixamos de nos ser terra estrangeira.

quarta-feira, 20 de março de 2013

Almas kareninas

Já houve muito mais de não sei quantas mil releituras de Anna Karenina, e por isso nenhum aborrecidão me acusará de spoiler se eu disser que lá pelas tantas, no fim de uma gestação complicada e em arredores de morte, a personagem-título consegue o perdão do marido traído e até uma coexistência nobrinha entre ele e o amante (amante dela, bem entendido). Mas a morte prometida desanda, e Anna se recupera do parto. Todas as boas intenções escoam-se. A ex-futura-ex-adúltera acaba tendo de confessar a Karenin que não quer reencontrar o Conde [Ricardão] Vronsky simplesmente para choramingar um adeus comportado, e admite, passada: “Não sei viver com o seu perdão”. O marido arregala olhos lógicos e argumenta que ela mesma o tinha implorado por carta. “Sim”, ela conclui com honestidade aflita, “mas eu estava morrendo naquele momento”.

É. Kareninas, mais de não sei quantos milhões de relidas kareninas, propagam-se no mundo. Almas até amigas da consciência do erro – embora não inimigas do erro mesmo. Capazes de holocaustear a vida pelo filho da prima da vizinha, e incapazes de remendar uma mania a pedido do seu próprio. Suficientes para as grandes dores de mártir, que as exterminam numa febre, e muito poucas e incompetentes para os sacrifícios pequeninos do amiúde. Típico das almas kareninas: não saber conviver com o perdão. Que o perdão (alheio) invariavelmente nos bota em clamorosa dívida; e dívida, sobretudo moral, é o esmagamento lentinho dos peitos orgulhosos, dos que preferem aprofundar-se na falha para se autocondenarem depressa em vez de passar o resto da vida na tensão humilde das desculpas. Quando um ser karenino se declara espontaneamente ruim, não se humilha: liberta-se em rebeldia. Atira-se do prédio em chamas para não morrer entorpecido de fumaça. Joga-se mais rápido na desvairagem por ser mais fácil o maniqueísmo do “você é bom, eu sou mau, simples assim” do que a peregrinação interna de reganhar uma confiança, de restabelecer a própria identidade em melhores termos. A alma karenina, boa muitas vezes na fonte, deixa-se enlamear por preguiça. A alma karenina se esquece no conformismo do tempo e escolhe ser apenas o retrato na parede.

Mas como dói.

terça-feira, 19 de março de 2013

Depois da felicidade

Sim, vamos abraçar a cafonice de dizer que nascemos todos para ela. Para a felicidade. Isso é fato. O que me intriga e preocupa é a incapacidade crônica de alguns sobreviverem à plenitude. Quiseram muito, muito uma certa coisa (“coisa” no sentido geral, pois não ponho felicidades legítimas na conta de cismas materiais, a não ser que simbólicas: dar casa própria à mãe, por exemplo), quiseram algo furiosamente e ele veio, embalado numa fase radiosa. Só que a lua de mel com a conquista radiosa – você se casou, se formou, teve um filho, ganhou na loteria, deu um chute no emprego sugante, viajou finalmente para Paris, publicou o livro, foi aceito na ABL, papou o Jabuti ou qualquer desejado etcétera – não tem fôlego para inebriar pela eternidade nem uma pessoa naturalmente eufórica. Que dirá a de impaciência depressiva. Querer é preciso; mas há que se estar coraçãomente preparado para a resiliência do atingir.

Fosse físico como o sexo e o vício (em chocolate, pois me oponho aos outros), nenhum problema. O auge vem hormonalmente e rápido, e novas necessidades brotarão espontâneas na mesma proporção, sem que o motor pare de se retroalimentar – e se parar, parou; o corpo escolhe seus tempos e carências, apenas não podendo desistir da água e dos sólidos básicos que o sustentam. Mas com os prazeres sem matéria, com a vontade imovível por breve reação orgânica, o buraco é mais embaixo. Como manter querente, anelante, o coração que já declarou ter vivido o dia mais feliz da vida? com que facilidade esse vazio essencial se reconstruirá? para onde apontará? Como evitar que um peito assim, na ânsia de continuar batendo e existindo na mesma adrenalina da busca anterior, faça seu palácio em ruínas somente por suspeitar a única felicidade de erguê-lo de novo?

Porque os há dessa maneira – aqueles que empacam em seu dia mais feliz e, na impossibilidade de reinterpretá-lo over and over, como feitiço de marmota, resolvem brincar de armá-lo e desarmá-lo. São os que inconscientemente fracassam de modo retumbante logo após o sucesso mais balofo: ganham o Oscar, e no entanto emendam uma série de filmes bagulhescos; explodem como marca e empresa, e em seguida chafurdam em investimentos temerários; amam e reamam e triamam a pessoa das pessoas e, repetidamente, traem-na e perdem-na para mais e mais arrastar-se na reconquista. São os adictos da felicidade conhecida, palpável, conquanto insossegável e cíclica. Dizem-nos inquietos e de baixa autoestima: acredito. Os de baixa autoestima em que mais poderão crer, senão na própria incapacidade de gerar felicidades novinhas? Têm medo, talvez, de gastar-se na procura; de não carregarem suprimentos bastantes para, mantendo intacta a satisfação atual, colonizarem ainda outra. Pena. Tantos arco-íris deixam de ser expostos por causa desses corações de uma nota só!

Qual a solução para essa alegria ruminante, que se engole e se vomita até o arrependimento? Manter-se em estado perene de felicidade, sem grandes contrastes que gerem o pânico da busca. É um treino. Tântrico. Começa por não se projetar o Grande Evento, a condição sine qua non que coloca todos os sentidos em alerta para a Felicidade suprema. Há objetivos, sim; as pernas estão perdidas sem objetivos; mas há passeios antes dos destinos, há atalhos e flores, há museus e feriados, porque o espírito é enorme demais para saciar-se só de coisas enormes – e os vãos, com que se preencheriam? Há a chance (quase garantia) de que o espírito isento de sortes enormes, oceânicas, ainda assim consiga preencher-se com as gotas cá e lá recolhidas diligentemente, numa atenção incansável – quando é improvável e mesmo impossível que um esperador de Eventos os tenha em número suficiente, durante a vida, para cobrir todos e quaisquer vazios. Somos detalhados, específicos, temos infinitas carências também de pequeno e médio porte. Inútil esperar que só dependamos das conquistas radiosas e então não nos reste fome. Inútil supor que um tempo depois do Grande Evento não nos vá sobrar apenas, ecoando no oco d’alma, um “foi bom para você?”.

Foi, não – respondem os espertos. Eternamente continua sendo.

segunda-feira, 18 de março de 2013

Em vez de peraltagem

“Eu tenho um ermo enorme dentro do olho. Por motivo do ermo não fui um menino peralta. [...] Faço outro tipo de peraltagem. Quando eu era criança eu deveria pular muro do vizinho para catar goiaba. Mas não havia vizinho. Em vez de peraltagem eu fazia solidão.”

Por isso é que Manoel de Barros me consola e sossega quando me falam de infâncias felizes muito brincadas em grupo, muito corridas na rua, muito namoriscadas em fazendas e plays de prédio (somente poetas e demais seres extramundanos nos consolam acerca das coisas que só existem por dentro). Sou dona de uma infância muito fabricadora de solidões, e não raro bate a culpa de considerá-la feliz apesar de excluir outras crianças – ou muito até por causa disso. Filha temporã, quase década mais nova que a primeira, não tive companheiros pequenos. Não tive companheiros humanos pequenos. Cresci enfronhada no mundo adulto sem, com isso, desenvolver precocidade de atos – porque criança em geral é precoce por competição com outras crianças –, mas talvez alguma tendência prévia de cismação e necessidade permanente de ouvir o parceiro de dentro, o quase único das brincadeiras. Levava horas na construção solitária de “episódios” com bonecos, folhas de jardim, fiapos de linha, gotas d’água (sim, gotas d’água, que para mim podiam casar-se e dar filhos como outras criaturas quaisquer). Um elemento que viesse de fora, infantil, atrapalhava-me; invadia-me o mundo tão conhecido e erigido, tão confortável de descobertas que me aguardavam a um meu comando. Não é que eu não brincasse no coletivo; brincava na escola, embora sem correrias – a asmáticos recorrentes não são aconselhadas correrias. Mas escapava o prazer inteiro da coisa ao ter de negociar com a brincadeira do outro. Não me impunha muito, por ter vergonha de gostar de me impor. A consequência é que brincava um personagem em meu lugar, e todos hão de concordar que não há gozo completo na verdade parcial. Para isso servem as tias-avós: brincadoras dóceis e excelentes, inferiores apenas à maciíssima companhia de si mesmo.

Quem vê com olho externo pode achar-me criança partida, triste de silêncios. Nada mais falso. Sem ser de grandes travessuras – era, para isso, muito culpada –, passava o dia em grandes insuspeitas travessias. Demorei um bocadito a pegar cancha de mundo, por não ter contatos muito externos desde sempre; uma vez, porém, ampliada na sociedade pela escola, cresci mais rápido pela observação a que era afeita. Continuei boba para muitos: cresci por dentro, num silêncio fertilizado de leitura. E não lamento, não lamento o não ter tido dúzias de primos e vizinhos em intercâmbio de infâncias e casas, não lamento o ter sido quase absolutista em meus reinos e balanços e quintais, não lamento ter demorado horas e férias ouvindo Lobato em vez de voltar pra casa às 8 da noite esbodegada de soltar pipa e pular amarelinha. Não lamento a infância suave dos pequenos tormentos – medo da queixa de Vó, angústia da fila interminável de formigas –, não lamento o moleque que não fui nem a ave metafísica que tendia a ser. Não lamento as façanhas mais sonhadas que consumadas, nem os modismos não seguidos, nem o cachorrinho que não tive, nem os coleguinhas que não me chegaram a dormir em casa. Fui milionária de desenhos e impressionismos, de jogos de ludo com as tias e palavras-cruzadas com a avó, de Bozos e quartos da irmã, de pracinhas e cavalos de domingo, de cinemas e livros, de amigos-ocultos aguardados, de casas de chá constantes, de Mônica e Lulu e Turma do Alegria, de jasmineiros e oitis e azaleias. Tudo que lembro é de uma concretude quase flutuante. Coesa. Presente. Existente de se pegar. 

Infância feliz é isso: aquela que passarinho.

domingo, 17 de março de 2013

Dar horizonte

Foi entrevistado da Revista O Globo deste 17 de março o jornalista e escritor Eduardo Lyra, autor do livro Jovens falcões – que fala de 14 bem-sucedidos saídos do nada – e do projeto Gerando Falcões, ciclo de palestras e atividades upzadoras para produzir mais bem-sucedidos saídos do nada. Curti especialmente o comentário sobre o ato de percorrer escolas públicas e motivar a gente moça da periferia: “Mas não quero dar presente, quero dar horizonte. Presente bota o jovem na zona de conforto”. Verdade. Presente (quem viu Dogville ou é professor do município sabe) tem uma asquerosa tendência a se cristalizar como obrigação. Pega o outro despreparado para o merecimento; chove nele o agrado não necessariamente querido, não devidamente cultivado, de desejo não suficientemente construído. Resultado é que mata a primeira fome como um susto e ativa a fome de coisas menos primeiras, menos básicas, que não mais com facilidade choverão. Se o faminto não foi amaciado para ganhar presente, não sabe estar grato; apenas mais faminto. E não se deixa clara a estrada de atingir novos presentes sem ser pela espera ou pelo resmungo. Em suma: cria-se um monstro.

Dar horizonte é coisa diversa, oposta até. Não sacia as fomes urgentes, zumbis; pelo contrário, abre o apetite. Dar horizonte é botar um binóculo na cara e convencer que mesmo as urgências fáceis – sono, medo, luto, namoro, ânsia de passar o dia à-toando na rua – podem aguardar seu tempo ou sumir do mapa, em prol da Vontade maior que se põe a acenar no fim do caminho. Dar horizonte é trazer a autoestima do “depois” (só gente importante tem “depois”); colocar uma etiqueta de valor nos afazeres de um dia antes tão vago, tão avulso, tão gratuito. Apreçar para desapressar; pôr preço futuro em cada minuto presente para que tudo não vire um carpe diem negativo, uma correria de prazeres inúteis, uma pressa doida de conquistas inócuas. Quem tem horizonte sabe que não basta ter chão atual, embora amável, perfumado e necessário; é preciso enriquecê-lo com novos projetos de chão, é preciso ará-lo e debulhá-lo para que a beleza não só perdure em si como se desdobre, alimente. Quem tem horizonte planta Megassenas em vasinhos. Quem tem horizonte vê uma Disney onde outros veem charco, suspeita o diamante na ganga, intui a carta impossível na manga. Não recebe o mundo em compasso binário, não mora no óbvio, não dá corda à conversa previsível, aprende com a fonte imprevisível, inventa a colheita, antecipa a colheita onde outros passam sem atinar com a riqueza potencial. Quem tem horizonte não deixa de constatar o hoje; analisa-o melhor, inclusive, para dele ordenhar a mais eficiente catapulta.

(O dador de horizontes: quem fornece ou ajusta o grau dos óculos. Quem alfabetiza na sociedade. Quem inscreve na corrida. Quem adivinha sol amarelo e castelo que estão a cinco ou seis retas de nascer numa – suposta – folha qualquer.)

sábado, 16 de março de 2013

Your song

Aprendo com Marina Colasanti, em sua (como todas) preciosa crônica “Para dizer quem sou, me cantarão”, que “em alguma remota região da África [... ou do Oriente], quando uma criança nasce, os adultos e os sábios da aldeia se reúnem e começam a entoar melopeias e canções numa espécie de transe [...], até achar aquela que será a música pessoal e exclusiva do recém-nascido. Burocraticamente, diríamos que para o novo cidadão aquela música passa a ser uma espécie de carteira musical de identidade. Mas é muito mais, é uma impressão digital auditiva, é um reconhecimento interior, é a identidade em si. A partir dali, a comunidade canta aquela música à criança em todas as ocasiões importantes da sua vida – os aniversários, os ritos de iniciação, as grandes perdas”.

É belo costume e quase mágico, mas me traria problemas. Coloquemos assim: se eu me vertesse em um dos X-Men, fatalmente me tornaria a Vampira, por identificação. A guria absorve tudo que toca; me too – salvas as proporções. Em consequência, simplesmente não sou gente de ficar atada a uma canção eterna, porque, se escuto umazinha ligada a certa época, me transporto para a época inevitavelmente, com todos os seus cheiros e gostos e o inconveniente pior: sentires. E aí o resultado sairia de través, uma vez que a melodia-assinatura, longe de me emprestar eixo, me baratinaria. Não sou gente de música; sou gente de músicas. Gente que não pode ter as mesmas referências de adolescência e infância a tamanho alcance, sob pena de (num contato mais continuado) ficar lá presa, masmorrada na Caverna do Dragão temporal. Haja terapeuta para reencaixar sentimentos em suas devidas eras, depois de cada rito de passagem.

Inda que eu não seja forçada a recuperar raízes mês sim, mês não, com os sábios da aldeia fazendo lalalalá de coisas velhas no ouvido, a corda é bamba. O equilíbrio é tenso. Ando sempre desencapada, despreparada; ver-me invadida pela trilha sonora da novela anterior já solta um ou dois fios mui a custo esticados, já me faz misturar as estações afetivas. De repente sou duas, sou três. Sou a de agora e subitamente a da lua de mel, da oitava série, do primário. Toca “Sereia” e sou a de quinze anos, no hall de entrada do cinema, discutindo Cavaleiros do Zodíaco com a irmã. Vem “Innocence” (aquela chicletosa da Deborah Blando) e fico fazendo trabalho de grupo na casa de algum colega de sexta série, devidamente reinformada sobre os quem-gosta-de-quem que agitam a turma. Chega uma qualquer balada do Elvis da trilha de Lilo & Stitch e piso nas delícias agoniadíssimas de início de namoro. Assobiam os acordes de “Somewhere in time” e upa! retornam os iguais doze anos da sexta série, rodando na vitrolinha as paixonites malogradas. Escorre a voz de Marisa em “Depois” e sem querer tropeço nos alguns meses antes, quando tínhamos e acompanhávamos novela das nove. Aparece Moraes Moreira com seus pirlimpimpins e caio nos domingos do endereço mais antigo, jornal aberto no chão, pais em casa, brinquedo da Estrela, quintal convidando e tudo era uma vez.       

Saudades nenhumas. Nem aversões. Mas acabo precisando evitar umas canções que se entranharam em cada época (nem por isso favoritas) se quero manter a mínima paz de espírito de não ser tragada para o portal. Preciso ficar com as moderníssimas e as neutras – as que passaram pelas décadas sem marcá-las a ferro. Cansa. Cansa driblar aqui e ali os ataques de um mundo sem silêncios. Necessários reforços: minha atual equilibradora de pensamento (ou “música de higiene”, como já apelidei em outro post) é a “Sei” de Nando Reis, tão bonitinhamente ligada ao clima de Lado a lado, que me recuso a deixar terminar. Pra fazer durar, me meti na bolha espectadora: se não assisto a nenhuma, se outra novela nenhuma entra, Lado a lado não sai. Prontito. E depois dizem que a gente não sabe como voltar ou parar o tempo.

Eu sei.

sexta-feira, 15 de março de 2013

Ululantes

Aliás, não é só a competição que nos torna óbvios. Andamos de uma obviedade acachapante. Estarrecedora. Não me parecia – ou era impressão minha? – que chegássemos a ser tão óbvios há, por exemplo, uma década. Que seja, talvez, uma influência tenebrosa do politicamente correto; quem sabe? Vivem todos pisando em ovos, aterrorizados de ler ou emitir palavra que se desvie do caixote e toque a sirene vermelha antes de ganhar a interpretação devida. Hein – “interpretação”?? Quem é que tem tempo para isso, ora pílulas?... Negócio é receber diariamente o bandejão já deglutido de expressões da temporada, socadas na mesma lata de sardinha. Pisou fora do vocabulário carimbado pela Anvisa, lascou-se. É um preconceituoso, vendido, reacionário, perigo real e imediato, inimigo público. O equivalente idiomático a desfilar na areia de pochete.

E aí as obviedades comem. Com a eleição do papa Francisco, foi de chuá; em nada, nada, nada mais pensavam os canais vários senão perguntarem 837 vezes ao dia, com ar de descoberta da 8ª. dimensão: “Em quem se inspirou o papa para escolher seu novo nome?”. Em São Tomás de Aquino ou Santo Ambrósio, provavelmente – eu me retorcia. Também me irrita demasiado o entrevistador de jogadores durante a partida. O sujeito está lá, bufando, mancando de cinco pernas, o time tomando de oito a zero, vem o repórter e lhe enfia um microfone sorridente: “O que você está achando do jogo?”. Ó pena! que os esportistas são docemente precavidos contra a imprensa, engolem a resposta que vem boiando nos olhos e ofegam um “o time cometeu erros, mas a gente é unido e vai voltar no segundo tempo para buscar a vitória”, que se aplica a toda e qualquer pergunta feita na borda do campo, inclusive que horas são. Agora: produtor de ululâncias, no duro (que citei ontem mas merece repeteco, por ser hors-concours na coisa), é o eterno BBB. Só escapa de ser pior pelo quarto B que apresenta o programa e lhe confere algum frescor de dignidade. Porque convenhamos. Eu que me pilhasse lá dentro: era surto líquido e certo, com probabilidades de homicídio assim que ouvisse o primeiro “adoro ela, sou perdidamente apaixonada por ela, daria dois braços e um nariz por ela, mas voto nela por questões de afinidade”. Certo que eu permaneceria mais uns vinte anos no confinamento, porém a edição tenderia a ser tirada do ar. Lucro indiscutível.     

Também não é mais do que obviedade aguda essa modorra intelectual que anda arrastando hordas para as salas com filme dublado. Os odiosos filmes dublados. Nada contra nossa dublagem brasileira, excelente no quadro mundial; tudo contra o ato de dublar em si. Se se tem mais de sete anos, alfabetização decente e visão razoável (corrigida ao menos), dublar pra quê, criatura? Nos desenhos, vá lá; não há mesmo atores e só se troca seis por meia dúzia. Mas havendo atores! Havendo atores que assim não se ouvem em seus sotaques, suas criações, suas entonações, seus 90% de esforço atuante! Desfeita. O cúmulo. O mergulho no óbvio, nos sons óbvios, nos fonemas óbvios, nas expressões conhecidas, no feijão-arroz-farofa-bife da língua natal, já sobejamente lida e escutada do abrir ao fechar de olhos. A mediocridade sonora, a preguiça leitora, o comodismo cultural de quem quer só extrair uma sessãozita da tarde para arredondar a sesta, sem reais vínculos e reverências ao conjunto da obra. Sem o pulo no contexto. Sem a experiência completa. Só uma história suco-digestiva bebida de canudinho.

Assim os temas de redação das escolas municipais, que enfeitam de palavra bonita a ululância do “faça um resumo do livro lido”. Assim os repórteres de RJ-TV que vão “ouvir” o povo da rua e alegremente encaminham a pergunta para um “sim” ou “sim”, enfeitando qualquer drible às regras com o bruto de um sorriso amarelo. Assim a quantidade sufocante de mensaginhas no Face com paisagem ensolarada e confie-em-si-mesmo. Assim os que divulgam seus “planos para o futuro”. Os que declaram ser este “um elo de ligação entre duas realidades”. As rimas miserentas de pagode. O vocabulário anoréxico dos funks. Os flashbacks de novela recordando a cena vista há 34 segundos. Os diálogos de novela reforçando a tatibitatização dos últimos nove anos.

Sugestão de matéria de capa para a próxima Nova, bombástica: 1.001 posições inéditas no kama sutra do pensamento. Pra ver se a gente consegue voltar a crescer – inesperados, elásticos, ardentes, criativos – antes de (se) multiplicar.

quinta-feira, 14 de março de 2013

Ainda somos os mesmos

“A competição torna as mulheres óbvias”, reza uma interessante fala da Pantera Cor-de-Rosa original. Eu ampliaria: a competição nos torna, a todos, animais óbvios. Não existe sincera originalidade na ânsia da derrubada. Por mais hábeis que se queiram os estratagemas, por mais enredantes, por mais intrincados, são sempre e unicamente os mesmos, antigos como chover de cima para baixo. Querer ser ou parecer melhores é o esperado, é o previsível. É a mola que nos faz uma turba de clichês respirantes.

Em nome da má e velha competição, senhoritas mutilam-se organicamente – cortando-se, preenchendo-se, esfaimando-se desde que o mundo é mundo, e só evoluindo na ciência da tortura. Em nome dos primeiríssimos lugares, atletas profissas se vergam, quebram, torcem, forçam, dopam, sabotam-se de dor e estresse, respondem a sabidas provocações com sabidas outras; vão nas mesmas perseguições de rivais e intentos, nos mesmos discursos pseudo-olímpicos, na mesma culpabilite aguda dos treinadores, na mesma milenar revolta contra os árbitros. Em nome do mais gordo espaço na mídia, mulheres ricas cabeceiam-se em declarações de eterna cretinice, estrelas e subestrelas tiram eternas fotos em eternos castelos famigerados, repetem frases eternamente de efeito, sorriem poses eternas. BBBs, que tédio supremo: em nome dos milhões sempre maiores e sempre iguais, cometem sempre iguais tolices, tropeçam em panelas iguais, teatros iguais, velhos adágios, velhas mesquinharias. Estão todos ininterruptamente sendo, ó cansaço: mais espertos, mais fortes, mais resistentes, mais potentes, mais up to date, mais belos, mais magros, mais milionários. Um mundo de super-heróis dando rasteiras, de coiotes lançando alfinetadas. Um inferno com fraldas de jardim da infância.

Moderno, fresco e novo, de fato e de direito, é o clima inédito de não-competição. Quebra a banca. Ninguém nos espera magnânimos, ninguém à primeira vista nos supõe desapegados; bondade gratuita, tranquilidade indiferente é susto. Sabe os reais lançadores de tendência? Os que recusam a promoção no trabalho porque a vida está megaboa assim, as que revelam com alegria o nome daquele perfume, os que congratulam o primo pela vitória do time dele sobre o seu próprio, as que riem divertidíssimas do vestido clonado na festa. Os que largam tudo para servir no Haiti, mesmo que o pai os vá considerar fracassados perante o irmão engenheiro; as que torcem secretamente que seu ex, tão bacana, enfim se entenda com a melhor amiga. Os que divulgam a receita secreta, o telefone do psiquiatra, as façanhas do colega de equipe, a estratégia (vitoriosa) do companheiro de time, o número da certidão e do manequim, a bobagem levemente pensada, a gafe quase cometida. Os docemente loucos – dessa loucura que é não desejar esmagar um só humano como uva de vinícola. Os livres. Os livres de coração em relação à desconfiança compulsória, que não é mais do que ego obeso da impressão de o mundo in-tei-ro! querer ser exatamente vocezinho. 

Bem-aventurados os desencanados: eles possuirão a terra. E não estão nem aí.

quarta-feira, 13 de março de 2013

Meia lua inteira

Também alimento sem querer esse preconceito. No final de minha amada Lado a lado, que me deixou em orfandade momentânea de novelas (por alguma deste ano ainda hei de tirar o luto?), o safado Albertinho indicou estar a caminho da luz: terminou o noivado com uma Barbie de cera, largou a nulidade profissional para empregar-se como garçom, reviu seu racismo crônico pedindo perdão a quem humilhara, deu uma força na relação da amada com quem ela realmente amava e, muito principalmente, acolheu com paixão total o filho ilegítimo. “O problema foi que ele acabou sozinho”, lastimei por costume. Disparate. Nunca Alberto Filho circulou mais acompanhado de si mesmo. Cismamos de achar sozinha a criatura que não tem parceiro amoroso, ainda que mate Darwin de orgulho na escala evolutiva – como se todo éden possível se fechasse numa só categoria de amor. Como se não houvesse um capaz de ser senão dois. Pois Albertinho concluiu-se bem redondamente em si, lutando, aliás, para compor a unidade decente que nunca fora. Terminou no mais coerente que lhe cabia, pela primeira vez viúvo das nefastices da mãe, matrimoniado com um sopro de vontade própria e grávido das manifestações mais básicas de gente. Lua de mel de um coração que começa.

Veja-se que tudo isso eu sei, e, pois, me reservo o direito de sacar da gaveta um certo platonismo jurássico, destinado inofensivamente aos seres de ficção – aqueles que gosto de deixar conchegados na vida quando sou obrigada a me despedir na esquina do último capítulo. Gosto de deixá-los entregues a outros cuidados, sabê-los amparados na tristeza e na alegria, quando se fecha o portal e não mais nossa ternura de plateia lhes zela o caminho. É mania perdoável. Imperdoável é estender nossa onipotência a quem respira fora da tela e da página, a quem existe de se pegar. Não é normal nem aceitável pressionar a sobrinha pelo príncipe que não chega, levantar ficha policial de todos os conhecidos para armar blind date para a prima, olhar enviesado para a cidadã que curte o restaurante chiquérrimo sem dar mostra de querer dividir mesa e conta. Não é feliz nem tolerável marcar um qualquer sujeito como solteirão a ser caçado, insinuar que o solteirão a ser caçado (se não se deixa caçar) é gay enrustido, esbravejar que o cafofo arrumadíssimo do neto precisa de um toque feminino. Não é patrimônio público, não é decisão coletiva, não é licitação pendente, não é arena aberta, não é júri popular o possível vácuo sentimental aparecido ou não aparecido no vizinho. Já muito e bem multiplicados que somos, caiu por terra há coisa de século o álibi xereta da perpetuação da espécie.

Encaremos. Tem gente cuja felicidade é, supremamente, conhecer e conhecer; queria que o mundo acabasse em biblioteca para morrer tornado traça, amassado entre meia dúzia de páginas perfumadas de amarelo. Tem gente com vocação espiritual não enjaulável em amor caseiro, e só plenificada no amor ágape que em tudo se espalha e a tudo desposa. Tem gente que quer cruzar o globo terrestre cabo-a-rabomente e se vê só amante de terras, dialetos, relevos, costumes. Tem gente que não nasceu com a simples paciência para negociações perenes de casal, e quer mais seguir sua vida pacata sem risco de aborrecer ou aborrecer-se. Tem gente que não tem as mesmas suas necessidades emocionais, igualzinho como se passa nas carências orgânicas: este ou aquele carrega anemia, um terceiro bota ferro pelo ladrão; um ou outro se resolve vegetariano, o do lado desmaia se todo dia não engolir um búfalo. Tem gente de tipos vários e gêneros infindos; inclusive, perceba-se, aquela gente que precisa sim acasalar com gente, mas ainda não é bastante gente para isso. Está em construção para maior conforto do usuário e não deve ser interrompida com adiantamentos de processo.

Amor não é lava a jato. Amor é consequência da limpeza benfeita. Enquanto um se confirma pouco, dois permanece (incuravelmente) de mais.

terça-feira, 12 de março de 2013

É preciso um bocado de tristeza

É melhor, sim, ser alegre que ser triste, e necessário fugir papa-leguasmente da melancolia que vai se engalfinhando n’alma. Assim eu ontem dizia. Mas tem outra verdade: uma dosezinha que seja de tristeza tem de entrar na massa de tudo, senão não se faz um samba não. Um quê de tristice, pequeno, discreto, hospedado na última esquina dos olhos, vai-nos amaciando feito martelo de carne, torna-nos porosos à presença da beleza no alheio e nos arredores. Que a alegria demasiado estridente reverbera em si mesma e engole o pano de fundo, além de assustar o delicado (o delicado é um cervo assustadiço). A tristeza comedida, não; pisa mansa, vestida de tanto silêncio que não espanta o cenário nem se basta sozinha. Olha respeitosamente para fora, como quem busca quebrar um jejum sem engasgar-se.   

Na ausência de tristeza não cresce poesia. Não cresce a mais inflamada poesia. Poema, se exalta, exalta sempre em detrimento de algo que pesa no coração por contraste; se elogia com ternura, necessariamente o faz de espírito ajoelhado, receoso de que todas aquelas perfeições saiam voando. Em vácuo de tristeza, amor não cresce. Amor é amigo do riso constante e inimigo da gargalhada perpétua; carece dessas seriedades e meias-luzes sem as quais o amado não se vê aconchegado em penas. Amor precisa da saudadinha lisonjeira, da despedida que aumenta a urgência, da contemplação tão mais venerante quanto maior a ciência de que o tempo tem ruins caprichos. Por que se (a)colhe a flor? pela refinada tristeza de sugá-la enquanto, brevissimamente, vive. Por que se fotografa a paisagem? pela aniquilante doçura de um dia revê-la encapsulada e saber que a volta não será como da primeira vez. Por que se abraça a literatura? pela sofisticação sem par de ter outras diferentes tristezas no colo, ser atacado por sofrimentos que não o atingiam, alcançado por inquietações que lhe escapavam, aprimorado por outras possibilidades que lhe vão chorar no ombro. Conhecer, amar, viajar, crescer – eis o fundamental invisível sem tristeza, porque sem tristeza subestima-se a envergadura do depois; sem tristeza leve e sorridente, não se faz o solo permeável a impressões definitivas; sem tristeza humilde e atenta, não se aprende a fragilidade dos saberes provisórios. Não se recolhem nem mimam dias. Não se valorizam, enquanto existem, alianças, rituais, cachoeiras, culturas milenares, o caminho ao altar, o último capítulo da novela, o Mickey, o réveillon, a Mona Lisa.

Sem tristeza (alguma), o ser não se ara. O ser não para.