quarta-feira, 20 de março de 2013

Almas kareninas

Já houve muito mais de não sei quantas mil releituras de Anna Karenina, e por isso nenhum aborrecidão me acusará de spoiler se eu disser que lá pelas tantas, no fim de uma gestação complicada e em arredores de morte, a personagem-título consegue o perdão do marido traído e até uma coexistência nobrinha entre ele e o amante (amante dela, bem entendido). Mas a morte prometida desanda, e Anna se recupera do parto. Todas as boas intenções escoam-se. A ex-futura-ex-adúltera acaba tendo de confessar a Karenin que não quer reencontrar o Conde [Ricardão] Vronsky simplesmente para choramingar um adeus comportado, e admite, passada: “Não sei viver com o seu perdão”. O marido arregala olhos lógicos e argumenta que ela mesma o tinha implorado por carta. “Sim”, ela conclui com honestidade aflita, “mas eu estava morrendo naquele momento”.

É. Kareninas, mais de não sei quantos milhões de relidas kareninas, propagam-se no mundo. Almas até amigas da consciência do erro – embora não inimigas do erro mesmo. Capazes de holocaustear a vida pelo filho da prima da vizinha, e incapazes de remendar uma mania a pedido do seu próprio. Suficientes para as grandes dores de mártir, que as exterminam numa febre, e muito poucas e incompetentes para os sacrifícios pequeninos do amiúde. Típico das almas kareninas: não saber conviver com o perdão. Que o perdão (alheio) invariavelmente nos bota em clamorosa dívida; e dívida, sobretudo moral, é o esmagamento lentinho dos peitos orgulhosos, dos que preferem aprofundar-se na falha para se autocondenarem depressa em vez de passar o resto da vida na tensão humilde das desculpas. Quando um ser karenino se declara espontaneamente ruim, não se humilha: liberta-se em rebeldia. Atira-se do prédio em chamas para não morrer entorpecido de fumaça. Joga-se mais rápido na desvairagem por ser mais fácil o maniqueísmo do “você é bom, eu sou mau, simples assim” do que a peregrinação interna de reganhar uma confiança, de restabelecer a própria identidade em melhores termos. A alma karenina, boa muitas vezes na fonte, deixa-se enlamear por preguiça. A alma karenina se esquece no conformismo do tempo e escolhe ser apenas o retrato na parede.

Mas como dói.

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