domingo, 10 de março de 2013

Casa de ferreiro

Horrorizou-me saber que um (chamado) ser humano conseguiu passar de carro com tão estúpida violência que arrancou o braço de outro ser humano ciclista. Nem foi o pior. Pior foi que o brontossauro não só não parou para prestar socorro como, na fuga desensofrida, tacou (!) o braço decepado no primeiro córrego que lhe cruzou o caminho. A sordidez quase ficcional do detalhe: ambos os rapazes têm frágeis 21 anos, e o tacador de braços cursa PSICOLOGIA. Psi-co-lo-gi-a, repito com soprinho no coração. Aquela psicologia mesma que abraça o humanamente sensível, que engloba, que entende, que empatiza, que estuda, que consola as precariedades de outrem. Pára o noticiário que eu quero descer.

Eu quero descrer que um futuro compreendedor de gente anda mutilando gente com requintes de tô-nem-aísmo. Me recuso a acreditar que uma médica especialmente designada para as lutas mais últimas contra a morte seja a primeira a injetá-la nas veias. Não consigo conceber que um responsável pela Comissão de Direitos Humanos dê metade dos humanos como “descendentes de um ancestral amaldiçoado de Noé”, ou qualquer sandice parecida. Choco-me com pastores que em vez de guiar, tresmalham; com ex-namorados e atuais esposas que em vez de respeitar, afogam e esquartejam; com advogados que em vez de zelar, corrompem; com guardas que em vez de guardar, assaltam. Sei lá se é má-vontadice minha, mas ando um tanto ressabiada com esse novo procedimento incômodo de eleger raposa pra babá de ninho de coruja. Um quê de apreensão por só andarem contratando gente que se limita a existir pra fora.

Sabe existir pra fora? É convencer na aparência, supostamente preencher os requisitos, caprichar no discurso, dar a César o que é de César em termos de diploma, anos de experiência, posição no partido, nota da prova, roupa de entrevista, sorriso de comício. Ah, e geralmente não prestar. Não prestar porque o sujeito que se dedica a existir pra fora não se presta ao importante. Não tem tempo de interromper a confecção da fantasia para engolir e incorporar o personagem; não tem coração de abrir mão do paciente com plano para não assassinar o interno do SUS; não tem cabeça de assassinar um preconceito para não desonrar a própria ética que sustenta; não tem grandeza de sustentar uma farda puída para não costurá-la a preço de 98% d’alma. Entrega-se o galinheiro à raposa porque ninguém, tanto quanto a raposa que existe para fora, mostra suficiente ânimo de bajular interesses, estômago de fingir competências, frieza de tecer parcerias. Quem só existe para fora não se consome em remorsos demorosos, não se limita com juramentos inconvenientes, não se gasta com filosofias exaustivas, não se prolonga em varreduras do inexistente espaço interno, guarda a energia toda e mais alguma para conspirar a favor de si mesmo. Que outro beneficiário, aliás, poderia habitar a face do planeta? 

(Quem está ocupado demais na lida de erguer edifícios de gente. Por dentro.)
 

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