segunda-feira, 18 de março de 2013

Em vez de peraltagem

“Eu tenho um ermo enorme dentro do olho. Por motivo do ermo não fui um menino peralta. [...] Faço outro tipo de peraltagem. Quando eu era criança eu deveria pular muro do vizinho para catar goiaba. Mas não havia vizinho. Em vez de peraltagem eu fazia solidão.”

Por isso é que Manoel de Barros me consola e sossega quando me falam de infâncias felizes muito brincadas em grupo, muito corridas na rua, muito namoriscadas em fazendas e plays de prédio (somente poetas e demais seres extramundanos nos consolam acerca das coisas que só existem por dentro). Sou dona de uma infância muito fabricadora de solidões, e não raro bate a culpa de considerá-la feliz apesar de excluir outras crianças – ou muito até por causa disso. Filha temporã, quase década mais nova que a primeira, não tive companheiros pequenos. Não tive companheiros humanos pequenos. Cresci enfronhada no mundo adulto sem, com isso, desenvolver precocidade de atos – porque criança em geral é precoce por competição com outras crianças –, mas talvez alguma tendência prévia de cismação e necessidade permanente de ouvir o parceiro de dentro, o quase único das brincadeiras. Levava horas na construção solitária de “episódios” com bonecos, folhas de jardim, fiapos de linha, gotas d’água (sim, gotas d’água, que para mim podiam casar-se e dar filhos como outras criaturas quaisquer). Um elemento que viesse de fora, infantil, atrapalhava-me; invadia-me o mundo tão conhecido e erigido, tão confortável de descobertas que me aguardavam a um meu comando. Não é que eu não brincasse no coletivo; brincava na escola, embora sem correrias – a asmáticos recorrentes não são aconselhadas correrias. Mas escapava o prazer inteiro da coisa ao ter de negociar com a brincadeira do outro. Não me impunha muito, por ter vergonha de gostar de me impor. A consequência é que brincava um personagem em meu lugar, e todos hão de concordar que não há gozo completo na verdade parcial. Para isso servem as tias-avós: brincadoras dóceis e excelentes, inferiores apenas à maciíssima companhia de si mesmo.

Quem vê com olho externo pode achar-me criança partida, triste de silêncios. Nada mais falso. Sem ser de grandes travessuras – era, para isso, muito culpada –, passava o dia em grandes insuspeitas travessias. Demorei um bocadito a pegar cancha de mundo, por não ter contatos muito externos desde sempre; uma vez, porém, ampliada na sociedade pela escola, cresci mais rápido pela observação a que era afeita. Continuei boba para muitos: cresci por dentro, num silêncio fertilizado de leitura. E não lamento, não lamento o não ter tido dúzias de primos e vizinhos em intercâmbio de infâncias e casas, não lamento o ter sido quase absolutista em meus reinos e balanços e quintais, não lamento ter demorado horas e férias ouvindo Lobato em vez de voltar pra casa às 8 da noite esbodegada de soltar pipa e pular amarelinha. Não lamento a infância suave dos pequenos tormentos – medo da queixa de Vó, angústia da fila interminável de formigas –, não lamento o moleque que não fui nem a ave metafísica que tendia a ser. Não lamento as façanhas mais sonhadas que consumadas, nem os modismos não seguidos, nem o cachorrinho que não tive, nem os coleguinhas que não me chegaram a dormir em casa. Fui milionária de desenhos e impressionismos, de jogos de ludo com as tias e palavras-cruzadas com a avó, de Bozos e quartos da irmã, de pracinhas e cavalos de domingo, de cinemas e livros, de amigos-ocultos aguardados, de casas de chá constantes, de Mônica e Lulu e Turma do Alegria, de jasmineiros e oitis e azaleias. Tudo que lembro é de uma concretude quase flutuante. Coesa. Presente. Existente de se pegar. 

Infância feliz é isso: aquela que passarinho.

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