sábado, 2 de março de 2013

Indiferentes de percurso

Eu na padaria escolhendo lanchices bonitas para o Fábio. Por perto uma senhorinha toda inha, franzina na raiz da palavra, de fragilidade porcelânica. Passa uma atabalhoada encarnada em Átila, o Huno, abalroa a senhorinha, a senhorinha acusa o golpe num ai! espavorido, a huna olha pra trás indesculposamente (e de maus bofes), segue em frente como se não, como se nada. Fica ao meu lado só a sombra perplexa da senhorinha, umidamente ainda mais frágil, mostrando-me a clavícula fraturada – ma-gri-nha! – em anteriores aventuras e narrando as desculpas pedidas em anteriores encontrões.
 
Um esbarrão no meio da semana, ligeiro, anônimo, bruto, indesculposo; um voltar (que era quase não-voltar) seco de cabeça, uma indiferença apressada, uma até indignação doentia, e eu pude constatar o ser humano a liquefazer-se numa tarde pacata de senhorinha que virou humilhação. Isso é que chorava nos olhos da senhorinha: humilhação. De pequena que era, minusculou-se numa coisa doída que nem merecera ser vista, que perdera mesmo a chance de perdoar porque não havia perdões solicitados. O que a deslocara fora menos o embate físico, desigual, do que a miopia da outra em não lhe adivinhar a dor dos ombros, a fraqueza provável, o histórico médico possível. Não se curvou da pancada, a senhorinha. Curvou-se porque, sendo atropelada no que era visível, foi duplamente espezinhada no que a huna não via. Atacada no que a huna mais deveria respeitar, exatamente pelo receio de não estar vendo.
 
Costume nosso. Atropelamos o que nos cai debaixo do nariz – péssima coisa; mas o ainda pior dos piores é que levamos de arrastão o que nem longe suspeitamos. Batemos na manha da criança mas não vemos a solidão abissal que nossa ida para o trabalho representa (justo agora que ela queria conversas longas, pra nos fazer desmentir o coleguinha que caguetou: Papai Noel não existe). Gritamos com a atendente de telemarketing mas não deduzimos a grosseria que ela ontem suportou do namorado, e que a trouxe para o serviço com a autoestima em carne viva. Fazemos slam! com a porta do quarto na cara de quem nos oferta consolo, mas não supomos quanto há de fome e de necessidade, nesses braços disponíveis, de provar que sim, que esses braços são boa mãe. Buzinamos fúrias no ouvido do motorista displicente, mas não desconfiamos de que sua cabeça flutua, aerada, porque acabou de receber um diagnóstico de pré-morte. Atiramos no que vemos (mal), acertamos no que nem mal vemos. Atiramos numa abstração, acertamos na carne. Esfaqueamos o mito; fazemos sangrar o infinito anexo.
 
Não estou dizendo, é evidente, que devemos passar por cima de toda e qualquer malcriação, descuido, incompetência, engolindo em seco o sorrisito amarelo porque do outro lado há um coitadinho que, oh, traumatiza ao mais breve acréscimo a seu padecer. Não estou dizendo que sejamos basbaquemente condescendentes, quando é caso de repreensão. Apenas que, no auge mesmo da razão, não sejamos jamantas; não exijamos nem reclamemos com deselegância (sempre) dispensável; não nos arrebatemos tanto pelos direitos próprios a ponto de sufocar os – nem por isso descartáveis – direitos alheios. Não abusemos da oportunidade de tripudiar. Não nos esqueçamos do torcedor frustrado, do órfão sedento, do ficante abandonado, do aluno reprovado, do dono de cachorrinho perdido que pode morar no lento, no distraído, no destemperado, no esquecido, no vacilão abalroado na esquina. Cuidado onde pisa. Cuidado com os bueiros abertos, tintas frescas e portas de vidro que o outro carrega no bolso e a gente não vê. Cuidado por onde anda.
 
Todo ser que se move leva uma clavícula quebrada. 

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