quarta-feira, 13 de março de 2013

Meia lua inteira

Também alimento sem querer esse preconceito. No final de minha amada Lado a lado, que me deixou em orfandade momentânea de novelas (por alguma deste ano ainda hei de tirar o luto?), o safado Albertinho indicou estar a caminho da luz: terminou o noivado com uma Barbie de cera, largou a nulidade profissional para empregar-se como garçom, reviu seu racismo crônico pedindo perdão a quem humilhara, deu uma força na relação da amada com quem ela realmente amava e, muito principalmente, acolheu com paixão total o filho ilegítimo. “O problema foi que ele acabou sozinho”, lastimei por costume. Disparate. Nunca Alberto Filho circulou mais acompanhado de si mesmo. Cismamos de achar sozinha a criatura que não tem parceiro amoroso, ainda que mate Darwin de orgulho na escala evolutiva – como se todo éden possível se fechasse numa só categoria de amor. Como se não houvesse um capaz de ser senão dois. Pois Albertinho concluiu-se bem redondamente em si, lutando, aliás, para compor a unidade decente que nunca fora. Terminou no mais coerente que lhe cabia, pela primeira vez viúvo das nefastices da mãe, matrimoniado com um sopro de vontade própria e grávido das manifestações mais básicas de gente. Lua de mel de um coração que começa.

Veja-se que tudo isso eu sei, e, pois, me reservo o direito de sacar da gaveta um certo platonismo jurássico, destinado inofensivamente aos seres de ficção – aqueles que gosto de deixar conchegados na vida quando sou obrigada a me despedir na esquina do último capítulo. Gosto de deixá-los entregues a outros cuidados, sabê-los amparados na tristeza e na alegria, quando se fecha o portal e não mais nossa ternura de plateia lhes zela o caminho. É mania perdoável. Imperdoável é estender nossa onipotência a quem respira fora da tela e da página, a quem existe de se pegar. Não é normal nem aceitável pressionar a sobrinha pelo príncipe que não chega, levantar ficha policial de todos os conhecidos para armar blind date para a prima, olhar enviesado para a cidadã que curte o restaurante chiquérrimo sem dar mostra de querer dividir mesa e conta. Não é feliz nem tolerável marcar um qualquer sujeito como solteirão a ser caçado, insinuar que o solteirão a ser caçado (se não se deixa caçar) é gay enrustido, esbravejar que o cafofo arrumadíssimo do neto precisa de um toque feminino. Não é patrimônio público, não é decisão coletiva, não é licitação pendente, não é arena aberta, não é júri popular o possível vácuo sentimental aparecido ou não aparecido no vizinho. Já muito e bem multiplicados que somos, caiu por terra há coisa de século o álibi xereta da perpetuação da espécie.

Encaremos. Tem gente cuja felicidade é, supremamente, conhecer e conhecer; queria que o mundo acabasse em biblioteca para morrer tornado traça, amassado entre meia dúzia de páginas perfumadas de amarelo. Tem gente com vocação espiritual não enjaulável em amor caseiro, e só plenificada no amor ágape que em tudo se espalha e a tudo desposa. Tem gente que quer cruzar o globo terrestre cabo-a-rabomente e se vê só amante de terras, dialetos, relevos, costumes. Tem gente que não nasceu com a simples paciência para negociações perenes de casal, e quer mais seguir sua vida pacata sem risco de aborrecer ou aborrecer-se. Tem gente que não tem as mesmas suas necessidades emocionais, igualzinho como se passa nas carências orgânicas: este ou aquele carrega anemia, um terceiro bota ferro pelo ladrão; um ou outro se resolve vegetariano, o do lado desmaia se todo dia não engolir um búfalo. Tem gente de tipos vários e gêneros infindos; inclusive, perceba-se, aquela gente que precisa sim acasalar com gente, mas ainda não é bastante gente para isso. Está em construção para maior conforto do usuário e não deve ser interrompida com adiantamentos de processo.

Amor não é lava a jato. Amor é consequência da limpeza benfeita. Enquanto um se confirma pouco, dois permanece (incuravelmente) de mais.

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