segunda-feira, 11 de março de 2013

Que não sai de mim

Andou circulando entre meus compartilhamentos de Face uma história de quadrinhos mudos, na qual a personagem é acompanhada a todos os cantos por uma sombra a princípio inha, em seguida crescente e, finalmente, enorme e sugadora. Acoplado à historieta, vem o pensamento atribuído a Gustave Flaubert, que mais ou menos afirma: “Tenha cuidado com a tristeza. Ela é um vício”. Fato; grandemente, um fato. Impressionei-me com a precisão de Flaubert, embora não seja exatamente novidade no autor. A tristeza, como todas as outras drogas que nos dão álibi para a imobilidade, é viciante no último grau. E pior que não atingível pelas políticas públicas.

Lógico que há os casos extremos de desequilíbrio hormonal, que desembocam em depressão. Mas há também a depressão alimentada e cultivada com afinco, em estufa, menos espontânea do corpo e mais amiga da preguiça de viver. É nossa herança romântica (infelizmente, não prenhe de versos); nosso banzo indefinível que é a saudade de qualquer coisa não tida, como disfarce para o terror de perder o que se tem. Deseja-se demais no fundinho dos olhos, reclama-se muito, suspira-se muito, mas é do medo absoluto de o coração gostar excessivamente daonde está e estilhaçar-se sem remédio numa perda. O melancólico saudoso canta o além do arco-íris e sonha Oz porque, gastando a energia vital em Oz, não precisa admitir que não há lugar como o lar. A tristeza são papoulas suculentas da Cidade de Esmeralda: nos adormece(m) previamente para as dores do percurso.

Tristeza acalentada é o “não consigo” morninho que nos exime da tentativa, é o passaporte da inação, é a desistência de estimação, as férias permanentes de existência. O triste profissional tem atestado médico para não fazer aulas de educação física dos 5 aos 103 anos. O triste profissional tem enxaqueca crônica de espírito para não precisar fazer amor com o mundo. O triste não se entrega em nenhuma porcentagem pois só saberia entregar-se inteiro, e se despedaçaria fatalmente, por não ter anticorpos. O triste elegeu o destino para seu lex luthor e sua kryptonita. O triste pode ser dulcíssimo ou de convicção azeda; quando doce, tem uns tremeliques de adrenalina e alegria que lhe causam efeito rebote de tristeza dupla. O triste sofre muito para se despedir de cada momento, já que sente carinho de Estocolmo (inconfesso) pelos mesmos pesares a que está afeito. O triste não deixa de ser às vezes um feliz enrustido, um alegre conformado, que tem pavor de sair do armário por temer vagamente um Grande Castigo destinado a todos os tristes rebeldes. O triste é um eufórico frustrado. O triste é muito culpado.

O triste é o sujeito que prefere merecer duas iminências de desgraça na mão à felicidade voando.

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