sexta-feira, 8 de março de 2013

Todos os nomes

Sempre me intrigou. Em qualquer texto acadêmico ou afim, em qualquer bate-papo esquinesco, já reparou como é comuníssimo os homens serem referidos pelo sobrenome, quando é raro que mulheres o sejam? Em se tratando de academices, então, é batata. Ninguenzinho em sã literatura escreverá sobre o sarcasmo de Joaquim Maria, as espumas flutuantes de Antônio, os perfis femininos de José, as veredas de João. Mesmo poucos arriscarão suspiro a um Carlos sem Drummond, a um Manuel sem Bandeira. Em plena informalidade, idem: é cômodo e certo o “Ô Feitosa! Como vai essa força?”, o “E o Vascão, hein, Rodrigues?”, gritado com calorosa fraternura no barzinho. Muito entretanto, é quase nada provável que se trate de igual maneira uma sua amiga Rita Feitosa, uma velha professora Lúcia Rodrigues – tanto quanto é improvável que uma tão querida Clarice vire somente Lispector; uma Florbela, só Espanca; uma Adélia, simplesinho Prado. Por que, me pergunto, homens são aceitos lindamente sem nome, enquanto mulheres ficam plausíveis sem sobrenome, perfeitamente?
 
E me respondo, já que o intrigamento é apenas retórico e sei, malgrado meu eu sei, quanto há nesta terra de velhos patriarcalismos. (Sobre)nomes masculinos são empresas. Homens são os troncos de família; mulheres, os raminhos enxertados; e não é por outra coisa que nós, nós unicamente, acabamos modificadas de sobrenome e história no casamento, como quem passa da primeira à segunda firma. Aliás, nós-vírgula: continuo tão integral em meus apelidos (como dizem os lusos) quanto antes da união civil, partilhando só amorosamente o belo Flora de meu Fábio e cedendo meu Duarte só amorosamente. Chegamos inteiros ambos, permanecemos ambos inteiros, sem possíveis aproximações de matrimônios com patrimônios.
 
Aflige-me o ser homem pessoa jurídica, e mulher ganhar abordagem de pessoa física livre e solta – como quem desembarca na vida e na relação trazendo só si-mesma, com a roupa do corpo que recebeu na pia de batismo. Como quem foi moldada para receber diferentes Legos, trocando a peça que se lhe adapte e mantendo exclusivamente o rosto do nome próprio. Aflige-me essa distinção sutil e surda de chamamento. Isto posto, passo à vantagem dessa nossa condição de Marias, Auroras, Lucianas, Renatas, Reginas e Alices, nuamente. Quando nos citam, citam-nos o valor absoluto, sem a quantia relativa que pesa atrelada a LTDAs e genealogias. Nós nos somos. Se nos tiram grife e contrato, se não nos dão prêmio e pensão, se nos enfiam no sanatório oitocentista ou queimam na fogueira medieval, nós nos continuamos. Bastamo-nos, de tão leves. Basta-nos a pequenice do verbete: de todo cantinho erguemos a construção enciclopédica. Seguimos frutificando em livro da Martha, gol da Marta, choro da Chiquinha, poema da Cecília, show da Madonna. Compramos o CD da Marisa, discutimos o veto da Dilma, comentamos o desfile da Gisele, babamos na escultura da Camille, nos quadros da Frida e da Tarsila. Sonhamos romances de Jane e filmes de Audrey, dançamos remelexos de Elba. Fungamos boleros de Dolores. Gargalhamos desbocamentos de Dercy. Lamentamos despedidas de Carmem, Amy, Marilyn, Diana. Na ligeireza do substantivo único – Maria, Madalena, Cleópatra, Vitória, Bethânia, Nefertite, Heloísa –, pousamos exatas e definitivas na história.
 
Mulher é flutuável. Eu sou. Desprecisa-se de brasão para plantar memória.


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