terça-feira, 11 de junho de 2013

A gente se desacostuma

Marina Colasanti, ainda ela, disse famosamente que a gente se acostuma. A gente se acostuma a não ter vista de janela, a não ter paisagem nem notícia verde, a chegar em casa tão soterrado que mal pisca de sono e já está amarrando a gravata no dia seguinte, a cambalear de maldormice em cima do ombro mais vizinho, em cima da parede de metrô menos povoada. A gente se acostuma a pernoitar no mesmo apê de marido e filhos, e só ligeirinhamente – num entressábado, num entredomingo – calhar de lhes ver a nova espinha ou tatuagem. A gente se acostuma; mas se acostuma em tom de sobrevivência, entre um ou outro escape de desespero enquanto o prato roda no micro-ondas, entre um ou dois dias de fúria que logo afogamos num tarja-preta e na programação normal. A gente, lenta e triste e dopadamente, sim, se acostuma. Só que, se não morre, no mínimo desvive. Não se acostuma porque comprou outra natureza: se acostuma porque perdeu na enchente a antiga.

Eu diria que a gente melhor se desacostuma. Tão fácil e espontaneamente tira a cangalha, por um instante mesmo, que pronto: vira habituê do paraíso, como se não houvesse conhecido senão ventura. A gente se desacostuma, com alegria rápida e fluida, do que leva anos para engolir sem água. Férias, por exemplo; meu estado de nascença. É pisar no primeiro minuto de recesso e não sei o que seja tédio aflito, não sei o que seja vida de não viver horas livres, espreguiçadas de verão, limpas da angústia repetitiva. Na falta de férias, fim de semana cumpre largamente a função de me fazer nunca ter sofrido, nunca ter tido rotina que não aquela, de caseirice e lazer inalterável. Voltar ao trabalho é que é então o susto; é o chute estranho no meio duma tão dogmática eternidade – de modo que cada reprincípio de semana desaba como um antiBig Bang. Não é o retorno ao cotidiano como dizem, por simples maioria de dias: é a saída da paz mais orgânica para o mais artificial dos violentamentos, quando a profissão fere nossa cisma de querer respeito. Nada tão esdrúxulo e tão antinatural quanto o professor pisoteado tapetemente, o motorista buzinado até a náusea, o policial atacado à traição, o jornalista sprayzado de pimenta, o gari e o carteiro tornados invisíveis pela pressa das gentes. Nada mais desrotineiro, nada mais incotidiano, nada mais alienígena do que o tapa não merecido, o xingamento que não está no contracheque ou no contrato. Nada mais anormal que a facadinha comum.

Não à toa é tão fácil! que a gente se desacostuma de não ser absurdamente amado, assim que adentra a porta dos pais. A gente se desacostuma – salve, salve o mp3 – de todas as músicas que não adora. A gente se desacostuma de barulho e fumaceira tão logo se perde nas aleias do Jardim Botânico. A gente se desacostuma de burrice e preconceito na primeira palestra de Flip ou Bienal. A gente se desacostuma de educação porca no trânsito ao primeiro carro que nos dá passagem em Gramado, só de se pisar na faixa. A gente se desacostuma do computador lentium só de roçar no mais guepardo dos processadores. A gente se desacostuma de todas as matérias odientas no minuto em que lê o nome na lista do vestibular. A gente se desacostuma de novela ruim no instante em que o personagem da nova trama nos faz (voluntariamente) libertar uma gargalhada. A gente se desacostuma de trauma, de soco, de grito, de cansaço, de sandice, de remédio, de rangido, de barata, de poeira; desacostuma como um pluft, como um raio macio, na velocidade da luz – e para quem diz que não: divã já e já, pra tratar a síndrome de Estocolmo. Divã já, para dizer xô à única coisa que impede o descostume: o pânico de ter de abrir mão duma agonia por outra maior.

Construir felicidade é veludo. Infelicidade é que dá trabalho.

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