sábado, 8 de junho de 2013

Cerimônia

O cara que perdeu há um tempo o filho de treze anos diz, na entrevista, que ainda tem alguma cerimônia nas horas de se mostrar feliz. Megacompreensível: é a culpa entranhada das grandes dores. A tonelada que somos obrigados a carregar socialmente, feito sinetinha de leproso, no caso de nos ter assinalado a tragédia. Pega meio malzão – ainda que o luto fechado, agendado e escuríssimo haja permanecido nos idos do século XIX – sorrir assim limpamente, em praça pública, quando todos continuam forçados a nos olhar com piedade. Quebra a estrutura. Quem viu/vê a morte de frente ou de banda, quem foi derrotado na batalha pelo filho ou está na iminência de ser abatido pelo câncer, não tem condições de ser flagrado de repente pirando ao som de “Mamma mia!”. Quem desceu ou descerá ao que combinamos chamar carinhosamente de fundo do poço não pode me vir com uma dessa, de circular por aí happy-hourizando com os amigos e dando pinta de feliz. Onde é que nós estamos. Por mais que nosso pós-modernismo iconoclaste as instituições – ou exatinhamente porque nosso pós-modernismo iconoclaste as instituições –, entramos em desespero de causa quando se ameaça a última fronteira de crença e solidez, a sagrada tristeza que vem com a indesejada das gentes. Temos horror à gafe, pisamos em ovos de avestruz perto de pessoa que muito sofreu com a Cuja, e tudo que pedimos em troca é que a dita pessoa se comporte condignamente em relação a nosso ar compungido, de preferência com sorriso amarelo e lágrima indisfarçada durante a conversa. Só faltava mesmo essa de ela nos dizer, animadíssima, que está superplanejando uma incursão pela Broadway no próximo ano. A primeira investida é Mamma mia!.

Não só a morte continua assim, entabuzada. Momentos de convulsão social como este que nos fala geram patrulha da felicidade mais (digamos) espontânea. Efemérides são bicho ciumento. Ai de quem atravessar esses dias com outro contentamento n’alma que não o de ver o país finalmente revolucionado. Ai de quem for flechado pelo amor burguês, de quem se vir inebriado pela leitura – ou feitura – do desejado romance, de quem se achar arrebatado dos pés pelo novo filme preferido, pelo emprego recém-tomado, pelo filho recém-retomado. Ai de quem roçar a timeline do Face com aquilo que lhe abarrota os olhos: a viagem tão longamente paga, o livro tão dificilmente lançado, as alcançadas bodas de prata, a bem-sucedida casa própria. Acusarão o desavisado feliz de alienação, no mínimo; de desrespeito, talvez; de falta de timing, certamente. Como se houvera timing histórico capaz de censurar as pequeno-enormes revoluções nossas, as discretas e de estufa sob Olhar Coletivo, mas comuns à ternura dos revolucionários mesmos. Como se o manifesto de um sucesso íntimo sujasse a necessidade de gritas maiores, quando, em verdade, é tudo la même chose.

São parecidos os quereres e conseguires, apenas momentos diversos de igual pulsão; e é um crime tolher alegrias honestas – não acintosas nem debochadas – como se enfraquecedoras da politização geral, tanto quanto seria crime tolher a politização honesta para não nublar o céu da alegria geral. Como é chato e démodé o mundo de marcadas antíteses, de contrastes fixos e comportados, ensaiados e inflexíveis. Como é entediante o assunto que se proclama único, seja qual seja – que nem vida nem país se fazem de homens de uma nota só, enquanto desdiálogos perigosos, sim, se fazem de homens de uma nota só. Alegria numa hora dessas? sim, numa hora dessas: a sempre melhor e mais própria. A alegria não basbaque é, tão ou mais que a tristeza, sagrada. A alegria não é o contra, não é o anti, não é o pavio, não é o inimigo, não é a Globo. A alegria é a ânsia. A alegria é a meta. A alegria é a face pronta da busca iniciada, o retrato final da prontidão. A alegria é o motor e o motivo. O amor e o cimento. A alegria é o carimbo do trajeto. A alegria é a prova. 

A alegria é à prova.

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