segunda-feira, 10 de junho de 2013

Impotentes

Fico para cuspir o coração quando o Fábio me conta de uma sua aluna de sexto ano, tão analfabeta que se limita – nos bons dias – a copiar algumice do quadro, sem ideia nem esperança de resolver a questão proposta. Ainda por cima cheira mal, a pobre, em seu analfabetismo indigente; mora à margem, descuidada de governo e família, sem quem lhe alimente os olhos vagos, quem lhe desembarace pensamentos e tranças, quem lhe providencie o bocado de limpa dignidade que acompanha os cidadãos inclusos. E como é que chega ao sexto ano analfabeta? pergunta a indignação distraída de uns e outros. Digo como: sendo trambolhada de uma série para a seguinte, entre estatísticas que posam lindas na capa das revistas de pedagogia e varrem os dados remelentos para a cozinha. Sendo ignorada pelos fatos e arrastada na onda de aprovações, para engrossar porcentagens – até congelar em seus limites, repetir cinco ou seis vezes a série impossível e ser enfiada num qualquer “projeto educativo” fazedor de milagres. Eis como. Virando joguete da burocracia nojosa, que passa anos sem condenar nem salvar de vez uma aluna; e, para cúmulo, caindo num lar cruelmente passivo, de onde nossos ais de compaixão não podem resgatá-la tampouco. Fica cuspido fora meu coração, solidário, penalizado, e nem por isso mais apto para erguer um dedo de solução.
 
Como nos fere a incapacidade de trazer luz aos refugiados da guerra invisível!, aos desabrigados do teto impalpável, aos vitimados pela desgraça que não grita no Jornal nacional. Como dói a dor que não alcançamos com o estender do braço, a dor que ri do nosso orgulho de ajudar; como dói a dor alheia que temos a infelicidade de entender, sem que nossa vaidosa importância possa arranjar-lhe remédio. Como dói a dor que anda por aí assim, indiferente à nossa boa vontade, indiferente à culpa que martelamos no travesseiro. Dói com doer duplo: o da piedade em si e o do debater-nos em nossas limitações. O da empatia em carne viva e o da humilhação de não sermos tão indispensáveis. O doer de amarmos e o doer de que todas as gerações, pelos séculos dos séculos, não nos amem em retorno. Como heróis da atitude. Como anjos da iniciativa. Como deuses da providência.
 
Dói-me com terror, por exemplo, a decepção alheia; daria uma boa metade do fígado para nunquinha enxergar o desapontamento nascendo, profundo, em olhos nenhuns. Dói-me como assassinato a cena do pai, do filho, do marido que não chegou a tempo da despedida última, e permanece num sofrer aturdido e suspenso, sem fecho, sem direção. Dói-me bofetadamente o transplante que perdeu validade por causa do atraso de aviões. Dói-me com certo exagero assistir às memórias do pós-ponto final das relações. Dói-me com dor impressionante a mãe que, no meio de longo esforço e sozinhez, não encontra o nome do filho na lista dos aprovados ou dos sobreviventes. Dói-me de punhal a matéria que mostra velhinhos de asilo conformados à solidão que não acende a TV na novela, não passa lenço úmido nem troca o lençol. Dói-me de navalha aquele olhar, qualquer olhar de gente que foi embora de si mesma e deixou o corpo, abandonou o corpo num desarvoramento melancólico, sem mapa nem data. O olhar da alma que debandou sem cumprir aviso prévio, da ânima que voou sem voar. Da vida indiferente a viver.
 
Dói-me toda acumulada culpa do não-martírio; todo despoder de desejar que a dor abismante do mundo nos carregue em compensação.


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