quinta-feira, 6 de junho de 2013

O espelho

Me perguntaram dia desses por que eu escrevia. Adianta nada dizer que gosto – ora, gosto; vai-se muito bem ao cinema porque se gosta, assiste-se a musicais porque se gosta. Porque se gosta, abrem-se gibis e demais revistices; joga-se golfe, passeia-se no Parque Lage, compram-se bijus, devoram-se quindins. Gostar é unicamente o prazer criança, o id livre das cobranças de dar, mergulhado na água limpidazinha do receber. Gozo puro do momento sem contrato, sem aplicação íntima, sem sofrida retribuição. Não se escreve porque se gosta; escreve-se, inclusive, apesar dos pequeninos desgostos colhidos no texto – que ele, como filho parido, exige renúncias vitais, sofrimentos de tempo, maus sonos, dramas de vocabulário e vírgula. No texto já criado e adulto, há um passado de choro e ranger de dentes.
 
Não, não se escreve porque se gosta. Também não se escreve (fora de remuneração) porque se precisa, considerando o que existe de emergencial e faminto no precisar. Tanto que em viagem, em meio à realidade alterada da viagem, não bate fissura alguma pelos dias de afastamento do computador. A vida vira outra e acabou-se: sem sedes, sem saudades, com diferentes plenitudes. Escrever é precisão, como pão, legume, amor, dinheiro? Não é precisão. Nem escrever, nem musicar, nem pintar, nem bordar, nem tecer, nem esculpir, quando não rola pagamento necessariamente envolvido – não são precisões. Preciso é tudo que nos sustenta como ar: sem férias. Que mata pela ausência. Ininterrupto.
 
Escreve-se, sim (pelo menos eu escrevo), porque não há alternativa. Porque não se quer ou não se deve ou não se consegue resistir ao refluxo, ao vomitório de vida ou de morte que vez em quando nos assalta. Porque nos depura ou nos compensa, nos alivia da incapacidade de dar a cara a gás no protesto das ruas, nos absolve parcialmente da sofrência ou contentamento extremos, nos liberta de ter opinião sozinhos, nos salva do incômodo demasiadamente engolido, do sapo longo tempo aguentado, da beleza de insuportável excesso. Porque escrever nos desesmaga, nos distrai de uma criação muito interna, muito eterna; porque nos organiza às avessas, nos reconstrói de-foramente, nos verte em espelho traduzível. Nos permite cumprimentar a gente mesma transformada em fotografia de ideia. A alma adaptada em tinta verbal.
 
Escrever nos faz toleráveis para dentro e existentes em público.


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