sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

Como será o amanhã

Há algumas semanas, fiquei deslumbrada ao aprender o conceito de foreshadowing (“prenúncio”, em tradução aproximada): aquelas pistas que se salpicam no decorrer da trama – em livro, filme, novela ou o que seja – para dedurar habilmente o que está por vir. Não é um mero easter egg; o easter egg é plantado como brincadeirinha, assinatura, referência, piscada de olho, porém não tem a função específica de antecipar fatos. O foreshadowing, quando bem executado, é a joia da coroa, e aumenta exponencialmente nossa loucura pela ficção.

Exemplos? vamos a alguns, lindíssimos, do cinema: no primeiro Jurassic Park, lembram que o personagem de Sam Neill não consegue fechar o cinto de segurança do helicóptero, porque as duas pontas são “fêmeas”? Ele dá seu jeito, no entanto, ao amarrar um pedaço no outro. Pois a ceninha inocente não está ali à toa: serve para anunciar que também as dinossauras, todas fêmeas, darão seu jeito de se unir e multiplicar-se. Já no premiado Os infiltrados, cada personagem que será morto aparece, em algum momento, perto de um X – grades que se cruzam, detalhes de parede, elementos de arquitetura etc.; afinal, “X marks the spot” (“o X assinala o local”). No instigante Clube da luta, entre a montoeira de foreshadowings existentes, destaca-se um que quase esfrega o gabarito na nossa cara: quando o Narrador espanca a si mesmo para posar de vítima do chefe, nós o ouvimos comentar em off que, por algum motivo, aquilo o fez recordar sua primeira briga com Tyler – o que revela claramente vocês-sabem-o-quê.

Foreshadowings são sensacionais na ficção, e nós adoramos (confessem) a doce entrega de sermos “enganados”, pegos de surpresa mesmo com todos os autospoilers, reconquistados pelo enredo ao destrinchá-lo após o the-end. Rimos de nossa incapacidade de perceber as dicas, juramos que da próxima vez estaremos mais espertos, mas da próxima vez continuaremos prontos para cair na mesma esparrela – só para novamente podermos nos apaixonar a posteriori. É divertidíssimo reolhar, ressignificar.

Na ficção.

Porque o foreshadowing está muitissíssimo mais presente do lado de cá da tela e das páginas; apenas sem igual doçura na descoberta, e sem metade do valor artístico. Há antecipações, há prenúncios, há sinais em quase tudo – e, principalmente, em quase todos. O namoradão ultrarromântico que começa mandando joia, urso, girafa, bombom, champanhe, trinta e sete dúzias de rosa vermelha, e lá pela terceira semana de love pede a senha do Face, pergunta quem era aquele cara, dá uma discreta puxadinha de braço: é fria, miga, e as próximas temporadas podem ter locação em hospital e delegacia; personagem inocente e amor verídico não caem no ciúme, na manipulação barata ou na barganha de sentimentos. Sabe também aquela criança bela e fofucha que adivinha salivantemente cada ponto fraco alheio, e o catuca de olhos brilhando? sabe aquelas mãozinhas que nunca se impedem de cortar o rabo do gato e alfinetar o cachorro? Não estou dizendo que seja um estripadorzinho em formação, mas, se eu fosse você, já marcava uma hora com o psiquiatra do plano. E o sujeito de negócios que vai ao seu encontro exibindo todo o branqueamento da arcada superior, só que (você bem viu) passou reto e cego pelo porteiro? Quem sou eu para me meter no seu business, mas, se aceita um palpite camarada, arrume outro sócio pra chamar de seu. Um que saiba que só a integridade legítima é sustentável.

Estou afirmando que cada ser se entrega todo no mínimo gesto, sem a margem de erro da serotonina baixa, da enxaqueca, do estresse de um trânsito doido ou de uma briga em família? Óbvio que não. Não somos roteiros oscarizáveis com 100% da obrigação de encaixar tudo redondinhamente. Mas afirmo, sim, que uma parte tem chance gigante de fazer delação do resto, que a essência morreria de exaustão se passasse 24 horas sem berrar sob a aparência, que existem motivos para contratar analistas de linguagem corporal, que a gente não acha pelo em ovo a não ser que o ovo seja kiwi, que cada porçãozinha nossa pode até não spoilar o futuro – mas pelo menos liga a luz amarela sobre o presente. Franqueza aqui: dá muito mais trabalho melhorar do que piorar; não é razoável supor que os defeitos se sublimem, etéreos, em vez de irem (como é mais natural) ladeira abaixo. Olho vivo, então, no machismo do ato e da frase, para que não se acabe dormindo com o inimigo. Atenção triplicada aos menores ensaios de crueldade, para que jamais se noticie um dia de fúria. Foco nas mostras de (nenhum) caráter, para que não se contrate o advogado do diabo. Faro fino na escolha das companhias, para que não se chegue ao protagonismo de relatos selvagens.

Delicadeza no olhar, firmeza na análise, coragem na reação, independência na atitude, humildade no pedido de socorro, zero onipotência na avaliação, tranquilidade mas precisão, elegância mas energia – antes. Para que não nos reste falar sobre o Kevin só depois.

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