terça-feira, 31 de janeiro de 2017

Direito à alegria

Mas confesso ter certas dificuldades com o “porque sim”. Não com o conceito de amor gratuito – pois me parece líquido e claro que se deva polvilhar amor sem miséria –, e sim com a prodigalidade em se autoconceder alegrias. Tipo: a gente compra um colar espetacularmente divino e já sai com ele da loja, como se não houvesse (festa) amanhã. Um amigo traz de mimo um champanhe de safra translumbrante e a gente estoura ali mesmo, no mais pleno domingo comum. O parceiro convida a uma fuga para as montanhas no finde, bem longe do níver, só para celebrar o casamento em sua mera existência. A blusinha preferida, que supostamente só poderia ver luz em dias santos e feriados, é vestida quinze vezes por semana e ameaça falecer em combate. São fartas despesas de alegria que eu docemente invejo: quem me dera economizar menos delas para o túmulo.

Não que eu seja uma carmelita descalça. Embora sem exageros, me dou um ou outro acessório quando a paixão é fulminante, e tenho uma ficha corrida na Estante Virtual de humilhar perseguido da Interpol. Também já escrevi por aqui que todo dia necessito de sobremesa mental, ou seja, a perspectiva de alguma delícia que possa a-vida-é-belezar as horas comuns: um sabor, um cinema, um capítulo inédito da série, uma experiência inusitada. Ainda assim, a fome da spoonful of sugar diária não me impede de viver culpada e avarenta. Não sei se é aquela porcentagem de TOC que todos escondem, não sei se é herança de algum antepassado que passou perrengue e estocava suprimentos; só sei que nasci com a detestável tendência do acúmulo – não de dinheiro (ou não seria professora), mas de chances e belezas. Raramente “desperdiço” bênçãos em ocasiões feijão-com-arroz. Guardo felicidades em conserva. Deixo algumas envelhecerem na adega um, dois, vinte anos.

Trago um adereço de viagem e faço a maior cerimônia para usá-lo a primeira vez: pode quebrar, arrebentar, soltar tinta, então que pelo menos tenha seu esplendor numa formatura, num Valentine’s Day, num passeio superúnico, numa reunião maior de família – num evento memorável o suficiente para poetizar até um possível estrago no objeto querido. Encomendo livro de um autor predileto e mantenho o negócio dando traça no armário, enquanto emendo uma leitura menos suculenta na outra. Descubro que tal blusa e tal saia fazem uma combinação muito, muito perfeita – tão perfeita que preservo religiosamente a dupla para os dias de mais gente vendo, de mais foto rolando. E não tem nadíssima a ver com cifrões: não compro nem tenho acesso a luxos. O que conta, o que gera ciúme e proteção daquela pequena alegria, é a raridade do encontro, do afeto embutido. É a impossibilidade de achar um semelhante. É a cor que calha, a simbologia de quem deu, o conforto que traz, o medo de em outra situação precisar e não ter, o pânico do arrependimento, o pavor da saudade. Sim, tenho pavor da saudade que sente quem abre sua garrafa de glórias sem saber se é a hora certa.

Sou doida, claro, e por me saber doida é que vou fazendo um exercício de desencanation e de libertação do ritual. Rituais são fronteiras importantes e ajudam a memória, mas tão casmurros podem se tornar que acabamos parados na alfândega. Free o direito à alegria, abaixo a burocracia: menos papelada a ser preenchida para nomear ocasiões especiais, menos carimbos de datas e números, menos selo-rótulo-registro se quiser voar. Para comemorar a lua, a taxa não é alta; festejar o sol não pede identidade: pode-se usar lingerie novinha sob a roupa do trabalho, sair para dançar em qualquer terça-feira, comprar flores frescas sem haver visita, desfilar de salto alto dentro de casa (não desfilo nem fora, mas tem quem curta), brincar de arborismo num sábado de agosto. Significados são coisa nossa, e onde criamos uns podemos inventar novos. Por que não plantar urgência em celebrar o aniversário de José de Alencar, a aprovação da prima em oitavo grau no Enem, o Dia Mundial do Mágico (que, aliás, é hoje; partiu?), o fato de ter amanhecido às 5h51, os dez anos da peça de escola em que o filho se vestiu de curumim?

Só é preciso o nosso apetite dando sim, sim, sim, sim.

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