quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

Inteligências

Diz que existe (e eu até já escrevi sobre) uma doença chamada prosopagnosia, que impede a criatura de reconhecer rostos. Não rostos do rapaz da farmácia ou da vizinha do 504, mas todos e os mais íntimos: os dos próprios filhos, da mãe, da esposa. Uma tragédia psicológica. E no entanto – matutava eu – todos somos prosopagnósticos afinal de contas, numa coisa ou noutra. É certo que não chegamos perto do drama de uma síndrome rara, mas temos sim nossas cegueiras específicas, nossas típicas incapacidades, nossas tolices geradoras de folclore na família e denunciadoras, no fundo, de nossas importâncias particulares.

Há um par de anos identifiquei-me, por exemplo, com um meme fabricado por alguém analfabeto em marcas de carro: “Se um dia eu for testemunha de algum crime, espero que os bandidos fujam de Fusca”. Toca aqui, irmão. Carros só me representam pontos móveis de quatro rodas que carregam a gente, e eu no máximo leio cor e tamanho – ou placa; sim, entendo que é o carro dos meus sogros (meu conhecido há década e meia) somente quando vejo a placa. Ora vão explicar tamanha burrice. É o mesmo com outras certas maquininhas, como celulares: tem os com botãozinho e os sem botãozinho, acabou-se. Se é iPhone, iPad, Galaxy, Lenovo, Z9032, S4675, XPTO, K-9000 – perguntem à Nasa (embora eu tenha certeza de que são todos X9). Já não bastam as 4.892 senhas de site? esses psicopatas ainda querem enfiar mais alfanumerices na minha vida? Nada. É COM e SEM botãozinho. Eu só uso COM. And proud.

Imagino que bugigangas com várias peças simplesmente não me façam sentido no cérebro, tipo conversa em coreano. Zero results na pesquisa. São utilitários ocasionais demais para que mereçam ampliação do verbete. Já é o contrário com a percepção de rostos: sem ter nada que se pareça com memória fotográfica, consigo por muito tempo me lembrar deles, escavar identidades sob as mudanças, pilhar semelhanças entre os olhos da garçonete e aquela atriz, entre o sorriso da cantora e os trejeitos da recepcionista. Por quê? Ué, porque é uma língua que faz sentido, porque sou miçangueira de humanas, lá sei? a ciência que disseque e descubra. Do mesmo jeito, acabo registrando lindamente as canções com letra (ainda que não saiba a letra), mas sou surda para a trilha instrumental que tocou naquela cena incrível. Percebo uma completa sinfonia nas análises sintáticas, mas sou jumenta em xadrez. Guardo facilmente nomes e turmas de alunos, mas sou uma total palerma para me localizar no espaço. Tenho o carinho de sentir a lógica de outro idioma (em nosso alfabeto, please), mas posso ver e rever e milver o lance do futebol sem nunca apontar um impedimento na prática, embora saiba descrevê-lo em teoria. Aliás, não sou páreo para texto teórico – após duas linhas, tudo vira mandarim arcaico –, mas me mande decorar um soneto pra você ver. Me dou intuitivamente bem com caixas eletrônicos e máquinas vendedoras de bilhetes, mas vou olhar qualquer questão de probabilidade como um burro olhando para um palácio. Ah! e não me peça para levantar o braço esquerdo ou o direito assim, de chofre: faltei nesse dia e preciso antes estudar a matéria. 

Fora do campo motor, consigo reconhecer direita e esquerda muito bem, obrigada. Todo colírio é pouco para se fugir à cegueira ensaiada que anda fazendo a gente dar outra vez com a cara no poste.

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