quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

O processo

“Computadores são inúteis”, resmungou Pablo Picasso certa vez: “Eles só podem te dar respostas”. A prova de que não concordo cem por centão é que tenho blog, Face, consulto tia Wíki e não venho escrevendo exatamente a lápis, mas entendo bem a indignação de Pablito e a moral da história. Computador – ou qualquer outro trambolhão/trambolhinho que entre na internet, faça uma resenha amiga daquele livro obrigatório, converta dólar em euro em libra em estaleca em iene, diga se já é uma hora decente de ligar pro primo na Suíça, aplane o dilema “enfim, a Dona Coisiane separou ou não separou?” – é instrumento apenas, e o pior, não é instrumento burro. Picasso não chegou a saber (e não sei se intuiu) que essas geringonças maravilhosas viriam não só trazer respostas imediatas, mas implantar perguntas inúteis. Viriam de tal modo seduzir, excitar, distrair e pornografizar a atenção humana que nos perderíamos entre as sereias, esquecidos de Ítaca; nos atiraríamos à casinha de doces, deslembrados do caminho da própria casa – ou da casa de alguém que não pretendesse devorar-nos.  

Computadores & cia. foram criados para responder, porém logo cooptados para desviar. Enquanto boiamos em sua lagoa azul de facilidades, esquecemos o objetivo da expedição. Enquanto nos entupimos das informações mais açucarentas sobre a barriga chapada de Fulaneusa, o mais recente casalzinho júnior, as dúzias de fórmulas coloridas de florzinha (e gramaticalmente medonhas) para dar bom dia no WhatsApp – falta-nos apetite para o almoço. Quem vai acordar do feitiço nessa hora e se dar conta de que pode investigar mais a fundo aquela acusação que viralizou na rede? Quem vai sacudir a poeira de fada, baixar da Terra do Nunca Pararei de Jogar Candy Crush e aterrissar na conclusão de que nós somos o joguinho de outrem? Quem vai catar respostas, se nós estamos na Disney virtual e elas estão no Hades? Quem vai investir na busca sólida, se moramos em ilha banhada de leviandades líquidas?

O importante é o processo da chegada à resposta, se resposta houver; e não o processo apenas: também a motivação do processo. Precisamos saber como saber e para que sabê-lo. Não nos interessa ter os tecnológicos como cérebros terceirizados: ou os fazemos simples secretários, ou alguém nos faz escravos através deles. Ou ganhamos células cinzentas marombadas pelo raciocínio, ou molengas que não resistem a ser arrastadas. Ou amadurecemos pela inquietação que não nos deixa achar o mundo normal, ou ficamos infantilizados ao receber o mundo quentinho na mamadeira. Ou descobrimos o que é importante escarafunchando onde não nos querem, fuçando arquivos que não gritam, deslacrando pastas seladas, questionando acasos inexplicáveis, comparando dados sufocadinhos, duvidando de versões faxinadas – ou somos alimentados por sonda, canudo, papinha mastigada previamente. Ou a tecnologia é nosso Robin, ou é nosso Iago. Ou é nossa estrela de Belém, ou é nosso Judas.

Respostas prontas economizam sola e frete (por falta de peso): concordo. Mas os apaixonados de verdades raras vão ajoelhar-se pessoalmente. Bem sabem que elas não se entregam de encomenda.

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