domingo, 5 de fevereiro de 2017

Ainda quero

A gente sempre ainda quer – se não quer, está morto fatalmente. E menos complexo talvez fosse querer o óbvio, mesmo que caro; o óbvio é definível, buscável com endereço, está exposto em vitrine, demanda tantos reais, tantos dólares, tudo pretonobrancomente. Você entra no site, googla no trabalho, descobre, planeja: metas, metas. Só que o muito que se quer nem sempre cabe. Tem pacote turístico para voar de balão, tem escola de francês para quem se dispõe à mensalidade; mas onde se conhece, onde se alcança aquele que lhe vai apresentar uma dúzia de passagens secretas palpitantes num castelo medieval somente seu? onde o agente de turismo que vai descobrir o melhor sebo da mais ladeirosa rua do Porto – sendo que naquele sebo necessariamente estará o livro que você caça há décadas, não porque o queira ler, mas porque sua dedicatória é a pista de uma história ou um tesouro? onde a fada madrinha que lhe concederá uma centena de pandas para esmagar de fofura? onde o organizador do tour que o levará a cada cenário de cada frame de cada filme que você mais amou desde o princípio dos tempos?

A gente finge que se limita ao ainda-quero previsível e domesticado: quero morar fora por seis meses, quero visitar todas as Disneys, quero estar na abertura de uma Olimpíada, quero fazer dança de salão. Porém não é (só) isso que somos, não é o que nos basta. O que ainda queremos – diz Clarice – não tem nome. Na verdade, antes de morrer desejamos acessar o absoluto sossego, a mais plena independência de ponteiros, alarmes, agendas, obrigações. Sonhamos ver a espécie de tal forma harmonizada consigo mesma, que os opostos não serão adversários e argumentarão por longos minutos e em pouquíssimos decibéis. Pretendemos decorar a coreografia de “Thriller” ou Chicago e bailar publicamente com parceiros, datas, espaços aleatórios. Esperamos adquirir nosso teletransportador particular e tomar café, almoço e janta em países diferentes. Andamos nos adiantando no controle da Força e tencionamos usá-la para desinfetar alguns cérebros. Planejamos virar o tipo de gente que larga tudo para fazer origami ou cantar num restô de Paris. Fantasiamos tecer e distribuir casas, espalhar pão, botar todo mundo na escola para ser visto e amado. Temos o fetiche de desburocratizar tudo e todos, de limpar as mentes de complicadores, de varrer o nhenhenhém que gera demoras. Ambicionamos, pessoal e coletivamente, causar – verbo intransitivo.

E, mesmo se causarmos, continuaremos querendo: vamos querer o simples incomprável. Recuperar igualzinhamente um sabor de infância, reconquistar a proximidade da família, fazer maratona da série preferida sem que o telefone toque e toque e toque. Particularmente, ainda quero atrair os beija-flores; quero juntar o povo da turma de faculdade numa reunião decente; quero ficar livre do domínio mental de músicas persistentes, obsessoras; quero dormir e acordar sem pena tanto de acordar quanto de dormir; quero reconhecer constelações; quero aprender bicicleta (pois é, não sei andar de bicicleta); quero algumoutra vez tomar banho de chuva; quero retomar o relacionamento (infantil) com o patinete; quero reagir melhor ao frio do ar-condicionado; quero alcançar o desapego. Quero chegar à sabedoria de não me amofinar com ruídos. Quero ser uma forma de paz.

E quero descobrir sozinha uma dúzia de passagens secretas palpitantes, se alguém aí tiver um castelo medieval que não esteja usando. 

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