sábado, 4 de fevereiro de 2017

Aos que nunca souberam

Somos um álbum de influências, somos um patchwork. E nossos pais, irmãos, maridos e amigos mais colados podem todo dia sorrir ante esse espelho e se encontrar em nós: descobrem na gente um bordão que antes era deles, veem em nossa mania de limpar a faca no pão uma herança deles, brincam de constatar que nossas músicas cantaroladas nasceram neles. Nós também achamos nosso vocabulário em bocas próximas, adivinhamos um elo de telepatia, seguimos a germinação de um ritual que plantamos. Acontece, pois, de nos sabermos – e de termos em volta aqueles que se sabem – formadores de pedacinhos de gente. Isso nos diverte e comove, mas não exatamente nos surpreende: não seria mesmo de esperar que a convivência atasse os laços? que a genética do sangue ou das horas se manifestasse nas minúcias, nas reproduções? É e seria. É a praxe dos contatos. Está na letrinha implícita das ligações humanas.

Mas existe a letrinha miúda da letrinha implícita, porque não somos tão previsíveis a ponto de apenas os mais vizinhos nos gestarem. Contra todo o lógico e o previsto, temos em nós fragmentos de doadores que somente nos esbarraram, que jamais foram íntimos, que sequer nos notaram ou anotaram o nome, que nem recaíram no clichê de nos terem conhecido num momento de luz, numa data de relevo. Tornaram-se influências porque nosso aleatório (?) painel de controle assim o decidiu, escolhendo caprichosamente, selecionando com critério top secret esses formadores que pouco ou nada nos viram, que provavelmente não lembram. Que nunca souberam.

Pois aqui vai minha gratidãozinha aos que nunca souberam. Aqui vai ternura à colega de minha irmã que quase não vi, mas que me deixou o hábito dos substantivos superlativados: um absurdíssimo. Aqui vai afeto a meu próprio colega de escola que pouco conheci, mas de quem puxei uns termos impagáveis (Fulano deu-lhe uma bifa, Sicrano te deixou na beiça). Aqui vai carinho, ó pá, ao impaciente garçom português que ensinou: pastel de Belém se come morno, misturando açúcar e canela em cima. Aqui vai sorriso à orientadora do estágio (a culpa é dela, alunos) de quem copiei o sistema de positivos e negativos em aula. Aqui vai amoroso reconhecimento às transeuntes que me inspiraram estilo nas ruas, aos vendedores de loja que sugeriram possibilidades, aos grafiteiros que colocaram menos tédio nos trajetos de sempre, aos conhecidos de um minuto que deram dica médica certeira, aos brevíssimos contatos que me implantaram questionamentos, aos olhares inesperados que trouxeram crítica e elogio. Sem vocês – mestres de ocasião, ídolos fortuitos, cúmplices de minuto, óleos de dobradiças emocionais –, possivelmente eu não me seria; ainda menos me saberia. Mil obrigadas pelo que não imaginam terem feito, pelo que me continuarão cedendo ao longo dos próximos capítulos de transformação.

Vai aqui minha benquerença fiel aos que nunca se saberão infinitos enquanto eu dure. 

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