quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

Crianças humanas

Primeiramente (fora, Temer!), peço vênia de todo coração para submeter os amigos a um trechinho de Hitler. Sim, de Hitler – dói mais em mim que em vocês, mas enfim é preciso escancarar o olho no escuro para melhor ter certeza de quem está nos cuspindo. O pedacito de (aaaargh!) Mein kampf que tenho o desgosto de citar é mais ou menos assim: “A arte da propaganda consiste precisamente em ser capaz de despertar a imaginação do público através de um apelo aos seus sentimentos, encontrando a forma psicológica correta que irá prender a sua atenção e apelar para os corações das massas. A grande massa de pessoas não é formada por diplomatas ou professores de jurisprudência, nem por pessoas capazes de fazer julgamentos sensatos, mas sim por uma multidão vacilante de crianças humanas que estão constantemente oscilando entre uma ideia ou outra”.

Pode-se acusar aquele Adolf de todas as piorices, menos de imbecilidade. Poucos manjaram tanto dos paranauê da manipulação. Tanto assim que uma das dez técnicas de fantochice midiática apontadas pelo tio Noam Chomsky vai direitinho ao encontro do que disse o danado: quanto mais a mídia deseja enganar o público, mais o infantiliza. Quanto mais procura fazê-lo abdicar das escolhas adultas, mais lhe fala em bebezês. Convido especialmente os cariocas, por exemplo – a título de experiência –, a assistir aos telejornais globais das primeiras horas da matina e confirmar a tese. É quase o Xou da Xuxa para altinhos: muito risinho forçado e alegria incompatível com o horário e a cidade, muita interação com os espectadores que mandam vídeo sorridente para dizer “olha a hoooora!”, muito tatibitate do menino do tempo que explica a chuvinha, a nuvenzinha, o “amarelão” do mapa como numa aula de Geografia da segunda série. Se tivermos a doce malícia de imaginar quem seria o alvo da atração, quem estaria normalmente acordado antes do sol (para talvez pegar um trem e dois ônibus até o emprego?), vamos facilmente concluir a quem seria mais interessante tratar como beócio. A grande massa de pessoas não é formada por diplomatas ou professores de jurisprudência, cof, cof.

Por que nos tomar por crianças? Para que assim nos tomemos. Porque tal qual se dirigem a nós – assim reagimos. Nossa tendência é imitar e corresponder ao que nos é dado; e ser criança, afinal, passa por terceirizar decisões e responsabilidades. Se nos infantilizam, também cuidam de nós, nos dão tutela, nos alimentam de ideias, nos guiam sobre o que convém em sociedade e roteirizam nossos dias, nossas metas. Crianças de qualquer idade vão para a rua com a camisa auriverde que papai escolhe, crianças torcem pelo time que mamãe ensina, crianças acreditam nos monstros e fadas que os adultos rotulam, crianças elegem heróis (juízes, por exemplo) que as salvarão dos homens feios. Crianças precisam de cavalinhos falantes para acompanhar os gols da rodada, precisam de cenas pastelão na novela das seis para concordar que o mundo é realmente bom e vai bem, precisam que lhes contem histórias da carochinha por tooooooda a tarde e noite, senão não conseguem dormir. Crianças não abstraem bem os maniqueísmos, não são eficazes em separar o argumento da opinião, o racional do impulsivo, o debate do xingamento. Crianças são mentalmente acomodadas se não as estimulam, são preguiçosas na leitura se encontram algo já mais colorido e mastigado, são mais afeiçoadas a passar os olhos na manchete e nas figurinhas do que em mergulhar nos conteúdos. Crianças são alarmáveis e impressionáveis – mas normalmente não contra os perigos reais, e sim em relação a seus próprios moinhos de vento.

Crianças do meu Brasil: assumam suas mais de duas décadas de mundo, deem um tempo na amarelinha. Vivam sua plenitude de adulto, sua prerrogativa de sair do quadrado, do cercado, do que nos é delimitado. Não achemos que nossa ingenuidade malandra pega algo ou alguém no pulo; a carniça é que somos nós.   

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